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Guerra na Líbia está a evoluir para crise internacional

Enquanto se procura solução política para travar o envio de armas e mercenários, rebeldes suspendem exportações de petróleo. O impacto vai sentir-se no preço e nas economias de todo o norte de África.
23 Fevereiro 2020, 19h00

A crise na Líbia agravou-se no início do ano, tendo havido combates muito violentos, tréguas intermitentes e intervenção direta de países estrangeiros, cada um a tentar impedir a destruição da sua fação no terreno.

A guerra civil reacendeu-se em abril de 2019, quando o general Khalifa Haftar, de 76 anos, que lidera o Exército Nacional da Líbia em Bengazi, no Leste, lançou uma ofensiva contra o frágil governo do Acordo Nacional, reconhecido pelas Nações Unidas. Inicialmente, as forças rebeldes tiveram algum sucesso, chegaram a ameaçar a conquista da capital, Trípoli, mas o ataque transformou-se num impasse militar, com mais de dois mil mortos, entre eles centenas de civis, e dezenas de milhares de desalojados.

A atual crise é marcada por aspetos ideológicos, entre os quais a luta contra o fundamentalismo, e tem origem no derrube do regime de Muammar Khadafi em 2011, mas também é óbvia a importância das lutas entre potências e de controlo dos recursos estratégicos da região. A Turquia quer aumentar a sua influência no Mediterrâneo e no norte de África, e o Egito está a tornar-se uma potência na mesma zona. Para os europeus, o que está em causa é a segurança energética e o controlo das migrações.

O líder rebelde, Khalifa Haftar, foi um dos generais do regime de Khadafi, mas rompeu com o ditador nos anos 80, tendo adquirido fama de manter ligações com a CIA. A sua ofensiva pretendia tomar o poder em todo o país e neutralizar milícias de radicais islâmicos que estariam a apoiar o governo. No entanto, os ataques também interromperam a reforma do executivo do primeiro-ministro Fayez al-Sarraj.

Perante a iminência de queda de Trípoli, o parlamento turco decidiu defender o governo líbio e, logo a seguir, Haftar pediu auxílio ao Egito. Os turcos enviaram elementos dos serviços de informação, armas sofisticadas e mercenários recrutados na Síria. A Turquia parece sobretudo querer alargar a sua influência no Mediterrâneo oriental, tendo já negociado direitos de exploração no fundo marinho da parte líbia do Mediterrâneo, onde haverá abundantes recursos minerais.

No terreno, entretanto, os combates acalmaram e as fações tentam agora reorganizar as suas forças. Na atual fase do conflito, há um grupo de potências, incluindo Emirados Árabes Unidos, Egito e Arábia Saudita, a enviar armas sofisticadas para as forças rebeldes, desobedecendo a um embargo das Nações Unidas. Sabe-se que do lado do Exército Nacional da Líbia estão ativos centenas de mercenários russos, aparentemente com o beneplácito do Kremlin. Bengazi teve apoio francês em 2011, com o derrube de Khadafi imposto por uma intervenção de aliados ocidentais, e terá tido desde então, mas Paris nega qualquer intervenção nesta conjuntura.

Ministros de vários países interessados no conflito (incluindo Rússia, Turquia, Itália, Estados Unidos, França e Alemanha) tentaram lançar água na fervura e discutiram em Munique, numa reunião que teve lugar este fim de semana, as violações do embargo de armas à Líbia. O grupo chegou a um compromisso que poderá definir um sistema eficaz de controlo, com a criação de um comité que vai acompanhar os desenvolvimentos da guerra civil. Também houve acordo sobre a necessidade de acelerar as negociações de cessar-fogo, já que as atuais tréguas, definidas no final de janeiro numa reunião em Berlim, têm registado numerosas violações. A Alemanha está a tentar criar rondas negociais contínuas, visando um acordo de paz, enquanto as duas fações líbias continuam em Genebra a discutir, sob a égide da ONU, a possibilidade de um cessar-fogo.

Os Estados Unidos parecem ter deixado nas mãos dos países europeus toda e qualquer iniciativa de paz, na medida em que uma intervenção poderia ser mal interpretada: Washington terá tendência para apoiar o Egito, país vizinho cuja desestabilização não interessa aos americanos, mas isso implica que a superpotência ficaria do mesmo lado que a Rússia. Moscovo, por seu turno, também não pode exagerar no papel de apoio a Haftar e, por incrível que isto possa parecer, o conflito sírio está a ser exportado para a Líbia, onde se confrontam mercenários sírios e russos que já combateram uns contra os outros na Síria.

Num desenvolvimento que se pode revelar decisivo para forçar um acordo, as forças rebeldes bloquearam os oleodutos que ligam a costa aos campos petrolíferos do interior, parando as exportações de petróleo.

Antes da crise, a Líbia produzia 1,3 milhões de barris de petróleo diários; na semana passada, a produção caiu para menos de 200 mil barris por dia. O efeito nos mercados internacionais não foi dramático, mas a instabilidade pode prolongar-se, o que teria implicações não apenas no preço do petróleo, mas também nas economias de todo o norte de África.

A Líbia vive no caos absoluto desde 2011, dividida em dois territórios quase independentes, que correspondem às suas duas zonas tradicionais, Tripolitânia e Cirenaica, cujo percurso histórico foi distinto. Na costa líbia terminam importantes rotas das migrações africanas, que trazem milhares de pessoas ao sonho (quantas vezes pesadelo) de atravessar o Mediterrâneo rumo à Europa, acabando muitas delas em campos de refugiados ou numa espécie de escravatura. Este turbilhão político está também a facilitar a implantação, com apoio tribal, de grupos fundamentalistas ligados ao Estado Islâmico, capazes de desestabilizar todo o Sahel.

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