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Lehman Brothers: Há dez anos, quebrou-se o mito do ‘too big to fail’

Setembro de 2018 marca o décimo aniversário da maior falência da história. O colapso do banco foi como uma pedrada no charco do sistema financeiro.
15 Setembro 2018, 09h30

“Tudo era uma incógnita. Nem sequer havia tempo para pensar, apenas para reagir ao que se ia sabendo”, conta Paulo Cruz, head of trading do Millennium bcp sobre o sentimento que viveu na segunda-feira, dia 15 de setembro de 2008. A data ficou marcada pela declaração de falência do Lehman Brothers, o então quarto maior banco dos Estados Unidos e uma instituição histórica com 158 anos e ligações por todo o mundo.

A dificuldade em manter-se à tona, após o rebentar da bolha imobiliária nos EUA no verão anterior, já era sabida há meses. A gota de água chegou quando, no domingo, o britânico Barclays recuou na intenção de comprar o Lehman Brothers. Não era o primeiro banco a negociar a aquisição dos ativos, mas parecia ser a última esperança. Quando voltou atrás, por considerar que o Lehman Brothers não tinha salvação sem a mesma ajuda financeira da Reserva Federal dos EUA (Fed), que já havia socorrido outras instituições, a queda tornou-se inevitável.

Às 4 horas da manhã de Lisboa do dia 15 de setembro de 2008, o banco, avaliado em mais de 600 mil milhões de dólares, anunciou o preenchimento do capítulo 11 no tribunal de falências de Manhattan, em Nova Iorque. Afinal, nenhum banco era demasiado grande para cair. “Naquele dia escreveu-se uma parte importante da história financeira recente”, diz Cruz. Nessa noite, não dormiu. Passou as horas a olhar para os canais televisivos norte-americanos da especialidade, enquanto trocava mensagens com colegas do setor.

Uma hora e meia antes da abertura das bolsas europeias, chegou ao escritório, na Avenida José Malhoa, em Lisboa. Toda a equipa de trading já lá estava. “O normal seria, uma hora antes da abertura, ter apenas um terço da equipa no local de trabalho. Tal era a necessidade de colher a maior quantidade de informação possível antes da abertura, para poder fornecer aos clientes dados minimamente verificados”, explica.

Steven Bell, economista-chefe da gestora de ativos londrina BMO Global Asset Management, geria então 500 milhões de dólares numa firma independente chamada Global Macro Strategy, e passou todo o fim de semana ligado às notícias. Conta que, também ele, se deu conta de que todos os planos de resgate tinham falhado e que a falência era inevitável no domingo à noite.

“A nossa empresa começou a ficar preocupada com uma situação séria de liquidez na banca de investimento dos EUA um ano antes do Lehman. Naquela época, não esperávamos que falisse, apenas que tivesse problemas e que talvez nos obrigasse a abandonar negociações. Como os mercados ficariam muito voláteis em tais circunstâncias, poderia tornar-se muito caro”, revela Bell. À luz do presente, as evidências do que viria a acontecer são claras.

 

O início do fim

Criado em 1844 por três irmãos que imigraram da Alemanha para o estado norte-americano do Alabama – Henry, Emanuel e Mayer Lehman –, o Lehman Brothers tinha origens humildes. Ao longo dos anos foi prosperando e ultrapassando crise atrás de crise, incluindo as falências ferroviárias ainda no século XIX, a Grande Depressão dos anos 1930 e duas guerras mundiais.

Apesar deste historial de resistência a crises, a instituição acabou por sucumbir ao colapso do mercado imobiliário nos EUA. Entre 2003 e 2004, o Lehman Brothers adquiriu cinco bancos imobiliários especializados em empréstimos Alt-A, ou seja, para devedores sem documentação completa.

A subida dos preços das habitações e o prémio de risco destes ativos geravam retornos atrativos. No final de 2006, acumulava já 146 mil milhões de dólares em contratos de crédito à habitação, mais 10% que no ano anterior. Os lucros disparavam, tendo atingido em 2007 o montante recorde de 4,2 mil milhões de dólares. As ações refletiam o desempenho das contas: em fevereiro desse ano, o valor de cada título alcançou o máximo de sempre, nos 86,18 dólares.

Enquanto se formava a tempestade perfeita, a gestão de sucesso do banco era aplaudida, incluindo pelas agências de rating que mantiveram até praticamente ao fim as avaliações em grau de investimento. A tempestade não foi evitada e eclodiu no primeiro trimestre de 2007. A bolha imobiliária rebentou nos Estados Unidos e os bancos imobiliários começaram a cair a um ritmo que não se assistia há sete anos.

Em março desse ano, as ações do Lehman Brothers registaram a maior desvalorização diária em cinco anos, devido às preocupações sobre o impacto da crise dos bancos imobiliários na rentabilidade. Exatamente um ano depois, voltavam a cair a pique, tendo perdido metade do valor num só dia. A Fed havia sido chamada a intervir financeiramente no Bear Stearns – outra instituição altamente exposta ao negócio do crédito à habitação – para evitar a falência e permitir a compra pelo JPMorgan Chase. A intervenção salvou o banco, mas acabou por aumentar as preocupações sobre os efeitos do rebentar da bolha no imobiliário.

“Lembro-me que comecei a questionar os nossos estrategas, em teleconferências, sobre a saúde do mercado imobiliário norte-americano, em 2006, por causa das elevadas taxas de crescimento dos preços do imobiliário”, afirma Ansgar Nolte, atualmente co-head de gestão de portefólio e ativos do alemão Berenberg Bank, que trabalhava na altura no Deutsche Bank, em Frankfurt.

“Sinceramente, não esperava que os EUA permitissem a falência do Lehman Brothers, mas já havia vários sinais de sarilhos no mercado imobiliário dos EUA ou nas depreciações e encerramento de fundos de grandes bancos nos meses anteriores”, referiu.

O Lehman Brothers ainda conseguiu financiar-se em quatro mil milhões de dólares, em abril de 2008, através da emissão de obrigações preferenciais conversíveis em ações, com um prémio de 32% face à avaliação na altura. A aparente recuperação foi pouco duradoura e, em junho, o banco anunciava prejuízos de 2,8 mil milhões de dólares. Ou seja, teria de encontrar investidores dispostos a injetar mais seis mil milhões de dólares para cumprir o plano do CEO Richard Fuld.

Ainda antes das negociações com o Barclays, Fuld tentou vender parte do negócio ao Banco para o Desenvolvimento da Coreia. A compra não avançou e, num só dia, as ações voltavam a desvalorizar 45% e os contratos de crédito swap dispararam 66%. A afundar em prejuízos e tentativas infrutíferas de salvação, os credores cortaram o financiamento de curto prazo, que era crucial para o banco manter o ciclo dos contratos de crédito interbancários com duração de apenas 24 horas.

À medida que a data se aproximava, o português Paulo Cruz relata que “havia um cheiro a sangue no ar”, enquanto Steven Bell conta como reagiu ao “nervosismo crescente nos mercados”. Uma semana antes da falência, o britânico decidiu eliminar completamente a exposição ao Lehman Brothers (equivalente a 3% da totalidade do fundo), tendo deixado para trás ganhos não realizados de contratos futuros de câmbio. A pressa em cortar relações não esperou sequer pela diferença horária.

 

Quando tudo parou

Byron Knief, que conta com uma experiência de 20 anos no negócio de private equity do Citibank, assistiu ao desmoronamento da primeira fila: em Wall Street. Já não se recorda se soube da falência por colegas ou pelas notícias, mas não esquece a incerteza. “Não tinha certezas sobre o que iria resultar. Presumi que haveria muito risco de contraparte a repercutir-se no sistema financeiro. Sabia que teria grandes repercussões, mas não tinha certeza”, relata.

Ao longo da manhã, os trabalhadores do Lehman Brothers enfrentaram um batalhão de jornalistas para entrarem no edifício na sétima avenida, em Times Square, e apenas para limparem as secretárias. Até o painel com o histórico nome – que viria a ser leiloado dois anos mais tarde em Londres, em conjunto com obras de arte detidas pelo banco – era retirado da fachada.

“O impacto imediato foi uma crise de liquidez. Ninguém queria assumir qualquer risco de contraparte. A Fed era a única contraparte disponível. Não podíamos financiar negócios ou negociar quaisquer mudanças nos negócios existentes. Tudo parou. A grande preocupação era onde colocar o excesso de liquidez das empresas do portefólio”, explicou Knief.

A banca entrou em tumulto e o dia ainda não tinha acabado quando foi anunciado que o Bank of America iria comprar o Merrill Lynch por 50 mil milhões de dólares. Em bolsa, os mercados globais reagiram em conformidade com o dia histórico em Wall Street, o pior desde os ataques terroristas a 11 de setembro de 2001.

A Fed tentou acalmar os mercados com um plano para facilitar o financiamento à banca, que se juntou a um consórcio de dez bancos norte-americanos e internacionais que criaram um fundo para instituições em stresse. O então presidente republicano, George W. Bush, garantiu estar a “trabalhar para reduzir as disrupções e minimizar o impacto dos desenvolvimentos nos mercados financeiros na economia”, enquanto o candidato democrata, Barack Obama, acusava a administração de ter causado “a crise financeira mais séria desde a Grande Depressão”.

“O colapso do Lehman forçou um reconhecimento da interconexão do risco à escala mundial. O crescimento dos derivados distribuiu o risco não apenas para além do setor bancário, mas também em todo o mundo”, sublinha Knief.

Luís Luna Vaz, atualmente na consultora F9Consulting, era, em 2007, membro do conselho de administração e da comissão executiva do BES Investimento, e concorda que houve um grande impacto indireto. “Estas situações nunca estão compartimentadas ou cingidas ao próprio banco. A grande maioria dos bancos tinha relações com o Lehman, quer por via de ativos, quer pelos credit default swaps, os seguros de crédito que qualquer banco tinha”, explica.

A questão vai, no entanto, além dos ativos. A desconfiança gerada no mercado minou o sistema financeiro. “Se os investidores são seres racionais e veem que o Lehman tem este tipo de problemas, cria-se um efeito de contágio por pensarem que os outros também têm. E muitos tinham”, afirma Luna Vaz.

 

O contágio perfeito

Sem liquidez, o financiamento e, consequentemente, o investimento foram sufocados. A longo prazo, o ciclo vicioso levou à desaceleração da atividade económica e desemprego. “O pior que pode acontecer nos mercados financeiros é o efeito de contágio”, acrescentou o consultor português.

As bolsas negociavam, em setembro, já a antever o que iria acontecer: o S&P 500 tinha perdido mais de 30% e o setor financeiro norte-americano acumulava uma correção superior a 40% desde o pico de 2007, após o rebentar da bolha do subprime.

“O mercado já estava a fervilhar por todo o mundo”, lembra Sheinal Bhuralal, managing director for Asia da EFL Global, que trabalhava então como trader em Hong Kong. “Todos os mercados sem exceção foram afetados”, refere, sublinhando que, tal como nos EUA e na Europa, houve problemas de liquidez por toda a Ásia. “Os spreads dispararam, as empresas não se conseguiam financiar e, como consequência, a atividade empresarial e económica abrandou. É o exemplo perfeito do efeito de contágio”.

Em Portugal, o risco de contraparte foi, numa fase inicial, limitado e o real impacto só viria a sentir-se anos mais tarde e de forma indireta, com o estalar da crise da dívida soberana. “A verdade é que o colapso do LB foi um dos fatores que contribuiu para o reforço do endividamento dos Estados, que queriam compensar as fragilidades económicas e financeiras. Esta situação esteve na origem da crise de dívida soberana europeia, onde vimos o valor da dívida periférica cair a pique, penalizando o capital em balanço nos bancos nacionais, que se tornaram sobre-expostos à dívida portuguesa”, sublinha Paulo Cruz, do Millennium bcp.

“Esta ‘consanguinidade’ entre bancos e Estados foi transversal a toda a Europa, com mais incidência nos países periféricos, transformando a crise de dívida soberana também numa grave crise financeira”, diz.

A braços com uma profunda crise, os governos tentavam impedir que a economia afundasse por completo. Na regulação também avançaram vários planos de atuação para conseguir um maior controlo das garantias apresentadas pelo sistema financeiro, evitar instituições demasiado grandes e com risco sistémico associado, bem como aumentar os níveis de capital do sistema.

Os bancos centrais entraram em águas nunca antes navegadas. “A minha maior surpresa veio das ações dos bancos centrais, bem como da sua coordenação”, admite Mathilde Lemoine, economista-chefe do grupo francês Edmond de Rothschild, a partir de Paris.

As teorias clássicas da economia indicam que os bancos centrais descem as taxas de juro para estimular o consumo e, consequentemente, a atividade económica. Mas até aqui, nunca os juros negativos tinham sido uma hipótese. Foi o que aconteceu e, por todo o mundo, os bancos comerciais passaram a ter de pagar pelos depósitos que detinham (ou detêm, no caso da zona euro) nos bancos centrais.

Foram, no entanto, ainda mais longe e tomaram medidas, sem precedente, inundando o mercado de liquidez através de programas de compras de ativos que sustentaram o sistema na última década.

 

Um jogo escondido

A par da tábua de salvação lançada pelos bancos centrais aos mercados, reguladores e governos apertaram o cerco à banca para prevenir que novas práticas de tomada de risco desmesurado resultem numa crise a nível global. As opiniões sobre o impacto da onda regulatória não são, no entanto, consensuais.

“Penso que as únicas garantias vieram de Hank Paulson [secretário de Estado do Tesouro em 2008]”, diz Lemoine, referindo-se ao plano de limpeza dos balanços dos bancos, que ficou conhecido como TARP. “A teoria económica indica que esta era a única forma de algum dia se esperar uma recuperação dos empréstimos e da economia. E a grande diferença, dez anos depois do início da crise, é que a zona euro ainda tem muitas dificuldades em obrigar os bancos a limparem as folhas de balanço, diminuindo o crédito malparado”, defende.

Ansgar Nolte, do Berenberg Bank, argumenta que a regulamentação é “exagerada”. O alemão tem assistido a um aumento da consolidação na banca ao longo do tempo na sequência do Lehman. “A cada resgate, a reputação dos bancos piorou e os políticos choraram as consequências, justificando cada vez mais regulamentações. O ceticismo dos clientes contra os bancos ainda é elevado e os bancos ainda procuram um modelo de negócio sustentáveldepois de, no passado, se terem focado a curto prazo na venda de produtos com elevadas margens. Devido à nova regulamentação, no entanto, há uma crescente lacuna de consultoria, porque os bancos não podem arcar com os custos desse negócio para clientes menores”, diz.

Qualquer que seja a cidade de onde assistiram à queda do Lehman Brothers, todos concordam que foi um momento de transformação profunda para o sistema financeiro. Dez anos depois, a banca fortaleceu a atividade e tem vindo, gradualmente, a regressar aos lucros, enquanto lida com problemas como o crédito malparado ou a entrada de novos players digitais no setor. Economias, empresas e bolsas crescem, tendo registado, em 2017, um ano como há muito não se via. No entanto, não se sabe se um novo Lehman pode ser evitado ou se, caso aconteça, a resposta poderá evitar uma queda em cadeia de mercados, bancos e economias globais.

“Por todo o mundo, a regulamentação mudou e as instituições estão agora obrigadas a standards muito mais elevados, mas é difícil saber se estamos melhor preparados para uma situação semelhante. Penso que os mercados mundiais estão mais resistentes para resolver problemas que possam aparecer. A questão é que não sabemos de onde poderão vir”, afirmou Sheinal Bhuralal.

“Conhece um jogo em que se tenta encontrar um problema e, quando esse está resolvido, aparece logo um novo vindo um outro lugar? É esse o nível de previsibilidade”.

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