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LIVRO: “Atrás da porta e outras histórias”

Teolinda Gersão observa e questiona o quotidiano num livro de contos trespassado pela melancolia. Uma edição da Porto Editora na “Estante JE”: sugestão de leitura para vencer o confinamento.
26 Abril 2020, 11h07

 

Um número agigantou-se nos últimos dias. Um milhão de portugueses enfrentam sozinhos a quarentena. Dá que pensar. Assim como os sentimentos que os tomam de assalto. Falam em nostalgia, solidão, tristeza. Saudade. Faltam os abraços. Os telefonemas não chegam. A concentração tarda. A ansiedade sobe para níveis insuportáveis. Alguém me diz “vive-se atrás da porta”. Visualizo a porta entreaberta num fundo azul petróleo. Mostra uma gaivota a espreitar. A porta é negra e o interior luminoso. Ficamos sem saber se a porta se vai fechar a qualquer instante. No canto superior esquerdo uma gaivota voa…

Uma frase trouxe a capa de um livro à memória: “Atrás da porta e outras histórias”, de Teolinda Gersão. A capa e os 14 contos que tiveram como mote outra clausura: a mensagem que as 12 crianças tailandesas e o seu treinador publicaram, após 17 dias de escuridão. Lembra-se? “(…) Resiste, apesar de tudo, e não cedas. Contra todas as expectativas, há uma possibilidade ainda que remota, de conseguires sair da escuridão, mesmo que, fora de ti, não haja nenhuma luz”. A autora transcreve essa mensagem antes de se lançar porta dentro.

E lá dentro conta-nos histórias protagonizadas por homens ou mulheres comuns, que procuram descobrir um sentido para a existência. Em “As gaivotas”, a rotina asfixiante prolonga-se após o trabalho, em casa. A fuga afigura-se impossível: “Vivia-se dia após dia dentro de um pequeno écran, ao lado dos outros, que igualmente viviam dentro de um pequeno écran. (…) E quando se chegava, fatigado, a casa, havia a esperá-lo como objetivo máximo a desejar, outro pequeno écran como o que neste momento tinha à frente.”

No conto que dá nome a esta colectânea, aborda-se a loucura destrutiva. O protagonista coloca ao seu psiquiatra uma questão provocatória: foi ele ou o mundo que enlouqueceu? A história desenrola-se e percebemos que o psiquiatra é mais doente que o seu suposto doente. Doente de inação. Doente de cobardia. Doente de incapacidade de questionar o mundo.

A porta vai-se abrindo sobre as personagens, cada vez mais reais, mais carne e osso. Debatem-se com problemas íntimos, ou questões que extravasam a escala individual, como a corrupção e a guerra. “(…) na verdade deixou de haver inimigo, nós mesmos nos tornámos o inimigo. Vendemos armas para ambos os lados dos conflitos, e nem contabilizamos as nossas baixas, porque acreditamos que as do outro lado serão sempre maiores.” Debatem-se com um mundo de horizontes fechados que parece contrair-se “cada vez mais”, lê-se num dos contos. Metáfora servida a frio?

Teolinda Gersão leva 39 anos de vida literária e não consta que tencione parar de escrever. Nem consta que vá perder a sua vontade de indagar. Questionar o mundo. Nem renegar a melancolia.

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