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Manuel Aires Mateus, as colinas de Lisboa e as sete vidas das cidades

Pensar a cidade exige vivê-la. Manuel Aires Mateus e o seu eterno pulôver azul, mãos em parte guardadas nos bolsos da frente dos jeans, ombros puxados para cima, olhar curioso, sabe o que vale mas não o exibe – ele gosta mesmo das ruas de Lisboa e pensou nelas uma e outra vez, não tem ideias feitas. É um arquiteto feito e também em construção.
6 Dezembro 2024, 10h32

O ateliê de Manuel Aires Mateus tem nas paredes uma série de frescos que não lembram ao diabo numa casa onde se pensa e faz arquitetura com maiúscula — aqui, procuram-se ideias próprias e uma execução sempre novas. A qualidade é a portentosa laje onde repousa o edifício conceptual (será mais certo dizer “o cânone” de Aires Mateus?) que implica pensar, repensar e resolver a maneira como vivemos. Os frescos, que vi há um ano, numa outra vida, não me saíram da cabeça. As caras estão tortas e disformes, mas não são arte, são apenas rabiscos toscos que saltaram de um pincel sem perspetiva e ângulo e olhar.

Saíram aos trambolhões das mãos de um pintor italiano que veio a Lisboa no século XVIII e estava a ser testado para obras maiores. O resultado é bizarro, embora não grotesco — não é, por isso, arte, não tem um pingo de alma ou sentimento; só tinta. Os frescos habitualmente atiram os tetos para o céu e iluminam — aprofundam, adensam — o espaço e as paredes, aqui isso não acontece. Talvez sobre um pouco de comédia naquelas caras de olhos perdidos no vazio. Só um arquiteto ou alguém com um olhar bem cultivado os manteria assim como são e estão — e não é que resulta?

O nosso almoço não aconteceu no ateliê deste arquiteto, no Príncipe Real, a quem muitos reclamam, com justiça, o reconhecimento do Pritzker, o prémio maior da arquitetura mundial. Almoçámos no Sumaya, o libanês que fica na rua da Escola Politécnica, em Lisboa; escolha de ambos, apesar de esta ter sido a primeira vez para Aires Mateus. No fim, ficámos a cheirar a especiarias do Líbano, o que nos levou por instantes até à Beirute dos anos 70 do século passado, quando a capital do Líbano ainda era a Paris do Médio Oriente. Hoje, refém dos extremistas islâmicos do Hezbollah, a cidade é uma névoa longínqua e insegura do que já foi e representou para o mundo — o sítio onde o Ocidente se encontrava e fundia com o Oriente próximo; abertura, pecado e luxúria a mais para cabeças toldadas e barbudas. Apesar deste contexto explosivo, o ateliê de Aires Mateus esteve quase, quase a fazer um projeto na zona do porto de Beirute, já lá vão três anos, mas a ideia ficou no estirador, ainda assim sinal que o fechamento não é definitivo.

A cidade
Lisboa era o nosso assunto, o prato principal. Manuel Aires Mateus gosta da cidade, vive na costa do Castelo. Mudou-se para lá há duas décadas, o que o obrigou a enfrentar alguma resistência familiar. “Nem cafés há”, dizia a família, talvez a mulher, porque os filhos ainda eram pequenos. Nenhum deles provavelmente jamais acreditou, como a maioria de nós, lisboetas, na volta extrema que este extraordinário dorso urbano deu ao longo da última década e ainda não parou de rodar sobre si e a cidade.

Milagrosamente, ainda sobrevive o lado popular deste recanto da capital. Quem chegar bem cedo, antes das oito da manhã, irá ver o lisboeta mais lisboeta que há a descer as ruas de calçada preta, torrões de açúcar escuro, algumas delas íngremes, outras com vista, outras apenas ruas com muita história — as pessoas que vão trabalhar. Mas quem for à costa do Castelo também vai espantar-se com grandes casarões, alguns palacetes, casas reabilitadas e até condomínios fechados, uma praga que se instalou sobre a cidade e a delimita e a cerca. Os condomínios fechados refletem a chegada de dinheiro novo e abundante a Lisboa, o que tem certamente um lado muito bom, não faria sentido desvalorizar o impacto positivo e multiplicador na cidade e naquela colina em particular, apesar do preço a pagar pela desvitalização de parte da vida em comunidade.

Lisboa preocupa Aires Mateus de duas formas diferentes, embora não antagónicas, porque a continuidade é evidente: o lado que um economista chamaria de macro e outro micro. A necessidade de planeamento urbano e a oportunidade de, a seguir, olhar e resolver os problemas concretos, rua a rua. “Jorge Sampaio foi o primeiro presidente de câmara a dizer: apesar de os portugueses e de o país não gostarem, nós temos de planear. Ele tinha inteira razão. Até temos orgulho nisso, elogiamos a nossa capacidade para desenrascar. É mesmo dramático”, diz o arquiteto enquanto molha uma fatia de pão sírio num dos três pequenos pratos que pedimos. O primeiro a chegar foi o Baba Ganoush, um puré de beringela com iogurte, limão, pimenta e pedacinhos de romã.

“Sampaio fez o Plano Diretor Municipal, mas depois não concretizou nada… não teve tempo para executar. Pelo meio. este processo foi interrompido e voltámos ao improviso atávico, ou seja, resolver aqui e ali sem construir um caminho. Finalmente, chegou o Manuel Salgado que traz com ele uma visão para a cidade. No fundo, ele pensa assim: se eu transformar o espaço público, o outro espaço também mudará, Podemos chamar a isto uma verdadeira política pública: o Estado passa a ser indutor de uma vontade.”

A vontade
A vontade a que o arquiteto se refere é uma mistura vários ingredientes, tal e qual a salada que nos chega entretanto à mesa: a deliciosa Fatttoush, uma mistura de tomate, pepino, rabanete e rúcula – tudo acompanhado por duas águas das Pedras com gelo e limão. “Os lisboetas não tinham orgulho na sua cidade, viviam para dentro. Não havia esplanadas. Durante anos e anos virámos as costas ao rio e ao sol. O Manuel Salgado reconciliou as partes desavindas. A experiência que ele tinha ganho no CCB e na Expo… davam-lhe o saber para o poder fazer bem. E é então que ficam lançadas as bases para esta cidade, que sendo a mesma fica mais aberta ao mundo e às pessoas.”

Manuel Salgado, vereador do presidente da câmara, António Costa, pensa e imagina este percurso não como um exercício intelectual ou de museu. “Ele percebeu que tinha de tocar nos pontos frágeis: tinha de fazer acessos, tinha de levantar do chão a pequena praça… Um amigo meu diz, com muita graça, que Lisboa é uma velha senhora, é preciso ouvi-la, senti-la com calma. Não é para falarmos, é para ouvirmos primeiro e, depois, acrescentarmos qualquer coisa. Manuel Salgado tem esta visão estratégica e percebe que é preciso que em cada lugar e situação é importante encontrar a resposta concreta mais correta.”

E isso ganhou forma como?, pergunto sem querer desviar-lhe o pensamento para outra margem. “As coisas mais extraordinárias são a recuperação da zona ribeirinha e a devolução do espaço público às pessoas. A ideia de termos uma verdadeira praça em cada bairro é isso mesmo. A terceira ideia foi trabalhar nos acessos… e não estou a pensar nas circulares, estou a pensar noutra escala. O melhor exemplo está nos acessos ao Castelo. Vínhamos de um tempo de ideias marcantes e fortes, como ter um teleférico até ao Castelo… uma coisa com um impacto insuportável na cidade. O Manuel Salgado consegue resolver o problema com o ascensorzinho, com a escada mecânica do João Favila e agora com o pequeno teleférico, também do Favila. Estas micro intervenções traduzem a vontade de descobrir as potencialidades de cada coisa, sem querer, aliás, sem ambicionar gerir apenas a grande escala.”

Um gole de água. Há vontade de contar na voz do arquiteto. “O que ele quer mesmo é ir ao concreto para juntar as peças que estavam espalhadas e desunidas. Finalmente, aparece alguém que pensa na necessidade da pequena operação, não apenas na intervenção pesada. Isto foi conseguido através de uma grande cumplicidade com o António Costa. Na prática, ele [Salgado] era o homem que geria fisicamente a cidade. Tudo com muita lisura e elevação. Esta combustão ficou em Lisboa, continua aqui, o que é bom, mas não significa que não haja muitíssimo por fazer.”

A cidade a pedir carinho
A conversa segue como o Tejo, com rumo certo onde desaguar. Entre as palavras de Manuel Aires Mateus aterra o pratinho de salsichas picantes (Sujouk), uma delícia que nos faz subir o tom de voz uma oitava. A porta do restaurante está aberta e nós na primeira fila a ver a cidade passar, os carros, as pessoas, o sol primaveril (outonal?) que nos ilumina e encandeia e envolve.

“É uma cidade magnífica… mas podia ser tão melhor. Há regras a mais, a administração é labiríntica e agora temos o gravíssimo problema da habitação. As questões urbanas têm um lado difícil de resolver. As soluções dão muito trabalho a encontrar, sem esquecer que a reação também é sempre lenta. O que está a acontecer hoje com a falta de casas era evidente que iria acontecer há quase dez anos. Mas não mudou nada ou quase nada. O Estado não quer perceber que tem um papel central na construção de habitação acessível.

O arquiteto distingue-a imediatamente da habitação social. “Os franceses, em Paris, se construirmos o que for, e nós fizemos agora 180 apartamentos… aquilo é um terço social, um terço acessível e o resto renda aberta. O milionário vive lá, habitualmente nos pisos de cima, mas entra pela mesma porta dos outros. E funciona, funciona mesmo. Isto não significa comprar um prédio na avenida da Liberdade e fazer isso, mas quando estamos a planear zonas novas da cidade, e podíamos fazer isso no vale de Chelas ou de Santo António ou nas Amoreiras, onde existem bolsas de terreno disponíveis, este caminho faria todo o sentido. A guetizição trouxe muitos problemas a Paris, mas há ação e planeamento para não repetir os mesmos erros e ir corrigindo.”

A economia francesa, sempre olhada de sobrolho levantado por muitos portugueses, também funciona. Aires Mateus conta-me que há promotores da habitação social, habitação acessível… “Aqui, o promotor é todo ele igual… nós somos pouco profissionais. Só há uma ideia: comprar o mais barato possível e vender o mais caro que conseguirmos e isso, aliado à burocracia e à pouca vontade de perceber que o Estado tem de fazer mais, torna tudo ainda mais difícil. Veja-se o que acontece em Viena, olhem para a quantidade de casas que o Estado tem. Obviamente, isso reflete-se no mercado, porque alivia a pressão e ajusta um pouco os preços.”

Chegámos ao momento do café. Ainda fomos por instantes a Xangai, às cidades néon da América do Norte que o Oriente importou e injetou com ainda mais e mais hormonas – as urbes onde o brilho dos écrans encandeia e hipnotiza as pessoas. Manuel Aires Mateus também gosta destas cidades, mas sublinha a nossa raiz e história. “Roma é a nossa referência, não Xangai ou Singapura. Tenhamos noção disso, por favor.” Lisboa já teve 800 mil habitantes, caiu para meio milhão e está a recuperar outra vez. Como será preenchida e organizada são as perguntas que temos de enfrentar.”

À nossa frente desce, íngreme e singular, com sol e sombra, apertada pelos carros estacionados com sorte, ladeada por prédios e palacetes, lojas e habitação, a rua de S. Marçal, cosmopolita e a pedir mais cuidado. Esta rua representa uma certa Lisboa, mas não define um parâmetro e tamanho únicos; é só mais uma das encostas doces que nos conduzem ao rio. A arquitetura de Manuel Aires Mateus só poderia vir daqui, da cidade branca.

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