A crise política francesa colocou os mercados europeus de sobreaviso e, apesar de os riscos estarem contidos por enquanto, o cenário continua a preocupar. Sem governo, o país prepara-se para uma forte probabilidade de não ter orçamento no próximo ano, o que adiará a imprescindível consolidação fiscal e arrisca fazer disparar os seus custos da dívida.
Apesar do sucesso nas negociações com o Reino Unido para a sua saída da UE, Michel Barnier encontrou uma tarefa aparentemente mais complicada e com um desfecho longe de ser bem-sucedido: o Orçamento do Estado para o próximo ano. Pressionado por uma situação orçamental insustentável e em contínua deterioração, o primeiro-ministro conseguiu a extraordinária proeza de unir a extrema-direita e a extrema-esquerda, mas apenas na rejeição das suas propostas e na aprovação de uma (de duas em cima da mesa) moção de censura ao seu governo.
Os mercados estiveram relativamente estáveis esta terça-feira, com os títulos franceses a dez anos a negociarem em torno de 2,91%, ligeiramente acima dos valores do dia anterior, mas abaixo dos 3% do final da semana passada. O spread para os Bunds alemães caiu para a casa dos 85 pontos base (p.b.) depois de ter fechado segunda-feira perto dos 88 p.b.. Já o índice CAC 40 fechou a ganhar 0,26%, recuperando parte das perdas do dia anterior.
Com um défice de 5,5% no ano passado e em linha para ultrapassar os 6% este ano, agravado por uma dívida de 110,6% (projetada por Bruxelas para continuar a subir até 117% em 2027), Barnier havia colocado como objetivo reduzir o saldo orçamental negativo para 5% em 2024, uma meta pouco ambiciosa perante os critérios orçamentais de Bruxelas, mas – como o parlamento agora prova – ainda assim demasiado longínqua para o atual ambiente político francês.
“A França tem níveis de tributação muito altos, uma despesa descontrolada, projeta um défice muito grande para o ano e, nem assim, é suficiente para que a extrema-esquerda e a extrema-direita estejam disponíveis para ter uma posição de não criarem obstáculos à aprovação do orçamento”, começa por ilustrar o economista António Nogueira Leite. “Assim, é muito complicado; um dia os mercados acordarão”, projeta.
A visão de que os mercados estão a ser um pouco complacentes com a situação francesa tem mais apoiantes. O departamento de análise financeira e económica do banco neerlandês ING considera que “os spreads a dez anos franceses estão agora mais em linha com um rating de ‘A-‘, e não os atuais ‘AA-‘, ou três níveis abaixo” do que as instituições de referência estão a atribuir – isto apesar de Fitch e Moody’s já considerarem as perspetivas económicas ‘negativas’.
Ainda assim, “os efeitos de contágio a outros mercados têm sido limitados”, continua a análise do banco neerlandês, e “os investidores há muito que duvidavam da possibilidade de os problemas orçamentais franceses se resolverem brevemente”, pelo que estavam já descontando esta expectativa.
Nesta linha, o Goldman Sachs fala numa situação orçamental “desafiante” e com baixas probabilidades de se inverter com o próximo governo, dadas as tendências despesistas das forças mais extremadas.
“Resumidamente, a situação política irá atrasar e provavelmente complicar a recuperação das contas públicas, mas esta irá acabar por acontecer. A única diferença é que o arranque será mais tarde”, acrescenta a nota do ING. Com a Fitch a projetar um retorno a défices de 3% apenas em 2029, este objetivo deve sofrer novo adiamento.
Recuperação europeia com mais um obstáculo
Do lado do crescimento, o Goldman Sachs cortou a previsão de crescimento no próximo ano para 0,7%, abaixo do consenso dos economistas, que é de 0,9%, e da projeção de 1,1% do governo. Para este resultado contribuirão ainda as expectáveis tarifas norte-americanas, que, face ao motor económico franco-alemão paralisado, terão fortes impactos na zona euro.
“Acho que temos um problema grave”, projeta António Nogueira Leite, lembrando a importância que os mercados alemão e francês têm na economia portuguesa. “Se os americanos avançarem como dizem que vão fazer, […] é muito difícil que a economia portuguesa mantenha um crescimento razoável. É normal um arrefecimento.”
Já o banco ING aponta para uma fraqueza acrescida da moeda única, sobretudo numa altura em que a eleição de Trump tem vindo a fortalecer o dólar norte-americano. A recessão é uma forte possibilidade na Europa, pressionando o Banco Central Europeu (BCE) a continuar a cortar taxas e arriscar aprofundar o diferencial para os EUA, desvalorizando ainda mais o euro e pressionando as contas externas dos países do Velho Continente – incluindo França.
A moeda única fechou esta terça-feira a cair 1% face ao dólar, a maior queda diária desde o início de novembro.
A nota positiva no espaço europeu continua a ser Espanha, que, apesar de não acompanhar os restantes PIGS (Portugal, Grécia e Itália) na redução da dívida e consolidação orçamental, tem liderado o bloco no crescimento – o que também pode dar alguma ajuda a Portugal, que tem no país vizinho o seu principal parceiro comercial. Por outro lado, denota António Nogueira Leite, países como Espanha ou Itália “estão muito menos dependentes de investidores estrangeiros para financiarem a sua dívida”, o que lhes confere uma margem de manobra acrescida na eventualidade de stress financeiro.
Segundo os dados do FMI e da Barclays citados pela ‘Reuters’, cerca de 50% da dívida pública francesa é detida por investidores estrangeiros, bastante acima dos 28% italianos ou até dos 40% espanhóis.
Caso não haja orçamento aprovado, França enfrenta 2025 com medidas provisórias que permitirão ao Estado gastar apenas até aos limites aprovados no ano anterior, sem ajustes à inflação. Com uma despesa pública de 57% do PIB, uma das despesas primárias mais elevadas dos países desenvolvidos e níveis de tributação já extremamente elevados, o caminho para a consolidação orçamental francesa estreita-se.
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