É a quarta vez consecutiva em que o titular da Ordem dos Advogados (OA) não é reeleito. Os advogados estão descontentes?
Eu penso que a insatisfação é clara. Pelo menos é claro que desaprovam os mandatos. Tirando o doutor António Marinho e Pinto, nenhum bastonário foi reconduzido; cada um deles terá razões específicas, mas, no geral, o que eu acho que tem acontecido é que, no fundo, tem havido muitas promessas que depois as pessoas olham e não são cumpridas durante os mandatos e esse acho que é o maior obstáculo à reeleição.
A posição dos advogados, muito dependentes do decisor político, influencia isso?
Ninguém pode negar a influência das reuniões com o decisor político e da forma como as coisas têm de ser conduzidas no sentido de tentarmos influenciar o poder político para tomar decisões que sejam, no fundo, aquelas que coincidem com os nossos interesses. Mas, de facto, acho que tem muito a ver com o que se promete às pessoas e acho que tem sempre havido promessas que estão no âmbito do poder político e não no âmbito do bastonário. Nós vamos tentar sempre influenciar, mas não fazemos promessas que dependem de terceiros e acho que isso é notório.
O decisor político tem um papel fundamental. Estamos à beira de eleições, já falou com os candidatos?
Temos um podcast em que vamos debater os programas para a justiça de todos os partidos com assento parlamentar e aí, naturalmente, também espero sensibilizá-los. Depois, vamos ter reuniões individuais com os partidos no sentido de os sensibilizar para a necessidade de olhar de outra forma para a justiça e também para os advogados, como é óbvio.
O que lhes vai perguntar e que mensagem lhes quer passar?
Diria, essencialmente, que gostava de ser uma espécie de cobrador. Repare que, relativamente aos partidos políticos que neste momento constituem a maioria na Assembleia [da República] que foi dissolvida, todos eles eram contra o atual estatuto [da Ordem dos Advogados], mas depois tiveram um ano em funções e ninguém tocou no assunto. Basicamente o que eu lhes queria perguntar era o que os terá feito mudar de ideias ou se pura e simplesmente acharam que não era relevante. É isso que lhes quero perguntar. Começaria por aí. E acho que esse é um dos temas que me preocupa muito e que está claramente na esfera do poder político.
Outra questão é, naturalmente, a da tabela [de honorários para os advogados oficiosos] e outra a da melhoria das condições em matéria de previdência. Acho que essas três temáticas são aquelas que mais dependem do poder político e que, naturalmente, a nossa influência ou pelo menos a nossa sensibilização deve ser para aí dirigida; duas que têm a ver com as nossas condições atuais e outra tem a ver com o futuro da profissão, que é a revisão do estatuto, que é essencial, atendendo que aquilo que existe não é suficiente para proteger o cidadão.
Tendo isso em conta, quais são as prioridades que definiu para o seu mandato?
Temos de distinguir o que são promessas concretizáveis e o que são ações chamar-lhes-ia de sensibilização. As temáticas da CPAS [Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores] e da previdência são importantes, assim como a questão da tabela e da melhoria das condições no sistema de acesso ao direito, agora, temos de distinguir. O bastonário não se pode comprometer a resultados, nem sequer a resultados mínimos; o que o bastonário tem é que levar as preocupações da classe e sensibilizar o poder político no sentido de ir ao encontro dessas necessidades. Como o estatuto, que é uma das matérias que me preocupa, diria que é uma das principais prioridades, mas infelizmente é uma daquelas que não posso resolver sozinho nem com o meu Conselho Geral.
Portanto, distinguimos estas das outras, e nas outras estão, por exemplo, a concretização da plataforma de arquivo dos DPA [documentos particulares autenticados], que é algo que não depende do poder político, está o advogado 360 [que reúne um conjunto de ferramentas para o exercício da advocacia], que é para nós uma das grandes novidades do nosso programa e que depende de nós e depende da nossa capacidade de concretização, não depende de terceiros. Estas duas, para mim, são muito importantes e revelam uma necessidade de adaptar a classe ao que aí vem.
Depois, claro, não se pode fugir à inteligência artificial e à necessidade de falar com os players da inteligência artificial – as Microsoft, as Googles, etc. – no sentido de ver o que é que podem aportar à advocacia e em que medida é que a advocacia pode beneficiar com essa inteligência artificial, pensando essencialmente na advocacia em prática individual, porque as sociedades, naturalmente, têm os seus recursos, têm as suas ferramentas e não estarão dependentes da Ordem, mas a advocacia em prática individual está, e esse é o nosso foco.
Como pode a OA apoiar quem não tem a capacidade das grandes sociedades, ajudando a nivelar terreno?
Em primeiro lugar, é sempre importante sublinhar que eu próprio sou advogado em prática individual e não tenho essa capacidade para ter uma ferramenta no meu escritório sozinho, não tenho. O que nós pretendemos é o acompanhamento que nós achamos que deve existir do advogado pela sua Ordem, ou seja, as quotas têm de ter alguma utilidade e o advogado tem de o sentir no dia a dia. E a inteligência artificial é uma dessas ferramentas em que é essencial que a Ordem faça esse nivelamento e que permita a todos os que não têm recursos individualmente ter acesso, através da sua Ordem, a ferramentas que beneficiem a sua atividade e é por aí que nós queremos ir; é a OA ser a negociante com esses players no sentido de proporcionar as ferramentas aos seus advogados, principalmente àqueles que estão em prática individual e em pequenos escritórios. É por aí que tem de ir.
Defende a criação de redes de advogados para terem maior capacidade para aceder a recursos. É o tipo de iniciativa que a OA pode incentivar?
É uma ideia que eu já defendo há muitos anos e que acho que é um dos caminhos que permitirá uma sobrevivência com sustentabilidade financeira aos advogados em prática individual. Cada vez mais somos confrontados com questões muito complexas, que muitas vezes não temos tempo para estudar e que temos de perceber que, criando sinergias com colegas permite-nos tratar melhor os nossos clientes, e isso só é possível através de, quase, uma espécie de agrupamentos complementares de empresas, no fundo, sem o vínculo societário, mas permitindo a cada um de nós escolher os melhores parceiros para determinados processos. É poder dizer ao cliente que não se preocupe que eu trato do seu processo, ainda que possa não ser a minha área de trabalho preferencial, mas que tenho uma rede que me vai dar esse acompanhamento, e isso é fundamental para a sobrevivência e sustentabilidade financeira. E a Ordem pode e deve fomentar esse tipo de agrupamentos, através de fornecimento de ferramentas e incentivando as pessoas a coligarem-se, a fazerem uniões que permitam servir melhor o cidadão e as empresas, que é isso que se pretende.
Um dos problemas identificados é a falta de digitalização do setor, nomeadamente na interação com o Estado. Vai insistir na necessidade de modernização?
Temos duas vertentes da digitalização. Uma delas, que é essencial, é a digitalização interna. A própria Ordem, neste momento, não é um exemplo de digitalização, não existe uma comunicação digital entre os advogados e a sua Ordem. Esse é o primeiro ponto, internamente digitalizar os serviços e permitir uma ligação digital que facilite o trabalho de toda a gente, dos advogados, de quem trabalha no próprio Conselho Geral.
Depois, o que nós defendemos, como temos vindo a defender no Conselho Regional, é que é fundamental que haja plataformas exclusivas da Ordem de ligação às entidades públicas e que permitam aos advogados ter um atendimento e respeitar o seu atendimento preferencial. Por exemplo, o caso da AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo] é um caso claríssimo. A Ordem pode e deve estabelecer contactos com o ministério no sentido de criar plataformas exclusivas, seguras, que garantam a integridade das comunicações, mas que permitam retirar aquela vergonha à porta da AIMA todos os dias. Não é admissível continuar assim, não é admissível que continue a existir. Ainda existem serviços com limitações de senhas e isso é inadmissível e temos de pensar que cada advogado pode tramitar centenas de processos, ou seja, são centenas de pessoas que deixam de estar à porta da AIMA. E se nós ainda por cima tivermos um canal digital, facilita toda a gente e tem a chancela da OA, portanto este é um exemplo e depois podemos multiplicar por todas as entidades públicas, se houver canais.
Como o Registo e Notariado?
Claro, e a Segurança Social e a Autoridade Tributária. Os Registos e Notariado beneficiariam ainda mais do que qualquer outro serviço dado o caos em que se encontram mergulhados por falta de pessoal, falta de meios. Deve ser a própria Ordem a facilitar e a ser parte da solução, criando uma solução que permita uma comunicação mais rápida e fiável entre advogados e as entidades públicas. Isso é fundamental, parece-me que é óbvio. Se eu tenho uma pessoa que pode representar centenas, porque é que insisto em prejudicar esse canal de comunicação? Aí está o erro, há que retirar as pessoas e dar condições para que os advogados possam ser verdadeiramente representantes e resolver os problemas das pessoas.
É necessário investimento, mas há queixas num setor que tem muitas receitas próprias. Como se resolve, tendo em conta, também, o custo do acesso, que é elevado?
É elevadíssimo, proibitivo, mas neste momento, no fundo, se formos ver as receitas do Ministério da Justiça, a grande percentagem das despesas dos tribunais é suportada pelos registos e pelos emolumentos dos registos.
Eu acho que temos um problema maior, porque a suborçamentação e o subinvestimento abrange não só a justiça, mas também o setor público e os serviços associados à justiça, como IRN. O problema só se resolverá quando nós percebemos que a justiça deveria ser uma prioridade dos programas [políticos]. Basta olhar para a campanha eleitoral que está a decorrer para pensar que a justiça é fantástica, magnífica; ninguém fala dela, não é um problema, não é um e tema, e isto preocupa-me enquanto bastonário eleito da OA. Como é que um dos setores essenciais para a paz social não uma abordagem política na campanha eleitoral? Não houve um partido que falasse da justiça, exceto para falar incidentalmente da questão da corrupção. Parece que a justiça só é a corrupção. Ora, isto é claramente desvalorizar a justiça e continuar a tratar a justiça como um direito fundamental de terceira ou quarta categoria, e não ao lado da saúde e do ensino, que esses sim têm um relevo diferente. Não deveria ser assim, a justiça é fundamental e ou se percebe isso ou então vamos continuar a queixarmo-nos porque temos meios, não há meios, mas não há meios porque o poder político não se preocupa com a justiça, por isso é que não investe.
Vai ser empossado a 8 de maio. Quais são os primeiros passos e as primeiras medidas a tomar como bastonário?
Eu acho que o mais importante, a nossa prioridade é começar a digitalizar tudo o que seja possível o mais rapidamente possível, porque uma das coisas que nós queremos é não continuem as dificuldades de ligação à Ordem dos Advogados e isso resolve-se, ou pelo menos mitiga-se, com a via digital.
A digitalização tem de ser a prioridade e, depois, naturalmente, perceber em termos de recursos humanos e recursos tecnológicos o que é que existe e como é que podemos dimensionar a Ordem para que seja verdadeiramente uma Ordem ao serviço dos advogados e não uma ordem burocrática, porque um dos problemas – e o advogado 360 também preconiza isso – é colocar o advogado no centro da atuação da Ordem, e isso passa naturalmente pelos nossos recursos humanos, por motivá-los no sentido de trabalharem para o advogado e não, muitas vezes, de costas voltadas, como se não fosse o advogado o centro da nossa atuação. Isso é fundamental para nós.
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