Têm sido notícia, nos últimos tempos, as diversas nomeações para cargos políticos de familiares do Governo. Dada a forma sequencial como estas nomeações têm ocorrido, cada nomeação adicional torna-se mais saliente e contestável.

Muitos têm aludido para o problema do Governo se tornar uma espécie de reunião familiar, levantando-se legítimas dúvidas se isso é a forma mais correcta e eficiente de montar um executivo governativo.

A argumentação utilizada em defesa destas escolhas é tripla: são pessoas de confiança (porque são conhecidas), são pessoas competentes (porque têm passado político) e não podem ser discriminadas negativamente por terem relações familiares com membros do Governo.

A verdade é que este argumentário é fraco: não é preciso escolher pessoas da família dos governantes para se garantir as três condições enunciadas. Só por mera casualidade é que se encontrarão, dentro das famílias dos governantes, os mais competentes e mais fiáveis. E não se pode confundir discriminação negativa com discriminação positiva. Isto é, se é certo que não se deve preterir alguém só porque é familiar de outrem, temos que ser muito austeros nas escolhas que fazemos para que não ocorra o contrário: escolher alguém porque é da família de outrem.

Note-se que esta discussão é muito importante num país pequeno, endogâmico e familiar como Portugal. Por isso, estar a centrar este debate apenas no actual Governo desvia o olhar para a superfície, quando o problema tem que ser atacado em profundidade.

O que temos que discutir, e combater, é a endogamia sistémica tuga, que mina a meritocracia, a justiça, a mobilidade social, a confiança no sistema, a eficiência e a felicidade da maioria dos portugueses.

Em Portugal há uma percepção generalizada (confirmada por experiências de vida e pelas estatísticas da mobilidade social) de que a família de origem é determinante para o sucesso profissional.

Note-se que os estudos mundiais demonstram que o florescimento individual depende muito dos três primeiros anos de vida. Isto é, a sociedade enfrenta uma desigualdade inicial que diz respeito à forma como cada criança é cuidada até aos três anos. Há famílias que tratam bem dos seus, outras que tratam mal.

Aqueles que tiveram o infortúnio de nascer em famílias que os negligenciaram ou destrataram, carregarão para toda a vida uma brutal desvantagem face aos demais. Compete à organização social, e ao Estado em particular, tudo fazer para compensar essa desigualdade inicial.

Isso faz-se dando oportunidade a que esses desfavorecidos tenham acesso real às condições dos outros: seja na saúde, na educação ou no acesso ao emprego, muitas vezes praticando discriminação positiva, nomeadamente na educação e na saúde, pois que os desfavorecidos têm que ser mais apoiados que os favorecidos.

Ora, assim sendo, quando olhamos para o mercado de trabalho e verificamos que a percentagem de filhos licenciados entre os licenciados é muito superior aos demais, que os filhos de empresários têm muito mais emprego (nomeadamente nas empresas da família) do que os que o não são, ou que os filhos de membros de Partidos, da Assembleia da República ou de Governos têm muito mais acesso às estruturas do Estado do que os demais, temos um problema.

Dados os vieses iniciais já salientados, esta é daquelas situações em que a justiça também se tem que fazer à chegada, porque a partida é desigual. Ou seja, temos que construir indicadores de endogamia e impor limites à dita.

Exemplo: se verificarmos que existe um número desproporcionadamente elevado de membros de certas famílias em certas posições, ou se proíbe (no sector público) ou se penaliza (no sector privado).

Tendo a família tanta importância na cultura latina e portuguesa, é mais raro encontrar pessoas com a visão de Warren Buffett, que não pôs os seus filhos a gerirem os seus negócios, nem lhes legará a sua fortuna.

Em Portugal, grassa um espírito de casta (com raízes na longa tradição monárquica) em que as famílias protegem os seus, seja na banca, na indústria, nas universidades, na advocacia, na magistratura, na medicina ou na política.

E note-se que isto não é um problema do sector público, é um problema transversal, até porque os centros de poder cruzam-se entre o público e o privado e os favores trocam-se.

Um exercício interessante seria ver quantos filhos de deputados (ou de altos quadros do sector público como o Banco de Portugal) estão no desemprego. Depois, comparar com os filhos das pessoas com iguais qualificações, mas que nunca tenham pertencido à política. Verificando-se (como será expectável) que a taxa de desemprego será muito superior nestes últimos, temos uma evidência clara de endogamia.

Garantidamente, as pessoas protegidas pela endogamia não são sempre (nem tipicamente) as mais competentes. Ora, essa escolha de menos competentes só é possível porque os cargos em questão não são sujeitos a transparência nem a grande competição.

Se fosse no futebol (ou em qualquer actividade sujeita a muita concorrência e onde a qualidade individual, ou falta dela, é perceptível por todos) isso não acontecia: ou porque é que acham que os familiares dos treinadores, dos presidentes ou mesmo dos ex-jogadores não jogam nas equipas das primeiras divisões? É que o talento não vem nos genes, nem se herda por palavras ou educação.

Enquanto Portugal não ultrapassar este espírito de casta, em que os da família, os que têm o nome xpto, são sempre melhores que os outros, nem fomentar a transparência e a concorrência, nunca seremos um país eficiente, meritocrático e justo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.