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Pós Covid-19: Quando os Direitos podem evoluir para Privações

Estima-se que entraremos, muito em breve, numa fase em que certamente ocorrerá a maior mutação no conceito de pobreza de todos os tempos, exigindo monitoração constante e uma ação de mobilização e solidariedade concertada, ímpar na história da humanidade, por forma a amenizar a crise e impedir que não nos viremos uns contra os outros. Fica uma reflexão sobre futuro.
15 Junho 2020, 07h15

O conceito de pobreza foi introduzido na literatura da especialidade por Seebohm Rowntree (1871-1954), na obra intitulada Poverty: a study of town life, definindo como pobres as famílias cujos rendimentos fossem insuficientes para satisfazer as necessidades nutricionais mínimas.

No entanto, ao longo dos anos as formas de pobreza diversificaram-se e os conceitos acompanharam essa evolução, introduzindo novas variáveis na avaliação e definição de pobreza. De acordo com Amartya Sen, Nobel de Economia em 1998, no seu texto Pobreza e Fomes – Um Ensaio Sobre Direitos e Privações, publicado originalmente em 1981, a pobreza passou a  ser considerada a privação das necessidades mais básicas do ser humano, como o direito à saúde e à procriação, até à privação da participação na vida social e política; sem as quais o autor considera que os indivíduos estão impedidos de assumir de pleno direito a qualidade de membros de uma comunidade social, económica e política. Por outras palavras, os indivíduos ficam privados do exercício da cidadania plena na sociedade em que estão inseridos.

Neste âmbito, segundo os dados do Eurostat, antes mesmo da atual crise sanitária provocada pelo Covid-19, já existiam 112,8 milhões de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social na União Europeia, face aos padrões ocidentais vigentes. Entre os países europeus em risco de pobreza, Portugal aparecia, segundo os dados disponíveis, como um dos países de maior risco, tanto de pobreza, como de exclusão social, estando acima da média dos 28 Estados membros europeus em 1,1 pontos (Eurostat, 2019). O assunto é seríssimo e agravar-se-á significativamente nos próximos tempos, quando se levantarem as moratórias, lay offs e outras suspensões de proteção ao Covid-19.

De recordar que a pobreza não é uma característica intrínseca de uma determinada pessoa, ou família, mas antes o resultado da sua condição, num determinado momento. Infelizmente para algumas pessoas e famílias, esses momentos duram, por vezes, uma vida inteira ou, mais grave ainda, continuam nas gerações seguintes. Logo, a questão que se coloca atualmente é: se chegámos à atualidade neste estado de pobreza, após vivermos tempos de trabalho em abundância, emprego para a vida, regalias sociais, entre outros aspetos que conferiram segurança e conforto às pessoas; o que será da nossa sociedade no mundo pós Covid-19, em que nada será garantido e poucos passarão imunes?

Na Europa, de forma a mitigar as consequências do confinamento, os governos criaram linhas de apoio às empresas que mantivessem os trabalhadores formalmente “empregados”, mesmo sem trabalharem a tempo integral. Por exemplo, na Alemanha partiu-se para um plano trabalho de curta duração – Kurzarbeit – reembolsaram-se as empresas até 60% dos rendimentos de 10 milhões de funcionários. Esta linha de intervenção funcionou bem após a crise financeira de 2008 e está presentemente a ser replicada por vários países europeus. No Reino Unido a estratégia de retenção de empregos substituiu 80% dos ganhos perdidos por 7,5 milhões de funcionários, até um máximo de aproximadamente 2.780€ (£2.500) por mês. Por seu lado, os Estados Unidos, reagiram de forma distinta, dirigindo o apoio para a manutenção do rendimento daqueles que ficaram, entretanto, desempregados. No entanto, apesar de relevantes financeiramente, estes apoios têm previsto um horizonte de vigência reduzido, no máximo até ao 3º trimestre do presente ano. Assim, atentos às notícias do mundo empresarial, cresce a preocupação, não só em relação à escalada dos níveis de desemprego, mas essencialmente que o desemprego se torne estrutural por extinção de milhares de empregos tradicionais.

Por tudo isto, estima-se que entraremos, muito em breve, numa fase em que certamente ocorrerá a maior mutação no conceito de pobreza de todos os tempos, exigindo monitoração constante e uma ação de mobilização e solidariedade concertada, ímpar na história da humanidade, por forma a amenizar a crise e impedir que não nos viremos uns contra os outros. Fica uma reflexão sobre futuro.

Referências:

Eurostat Statistics Explained. (2019). Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/People_at_risk_of_poverty_or_social_exclusion#Number_of_people_at_risk_of_poverty_or_social_exclusion

Rowntree, S. (2000). Poverty: a study of town life. Policy Press. ISBN: 9781861342027.

Sen, A. (1998). Pobreza e Fomes – Um Ensaio Sobre Direitos e Privações. Terramar. ISBN: 9789727102440.

Financial Times, Gavyn Davies, 17-mai-2020.

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