As reações à morte do comendador Rui Nabeiro, desaparecido este dia 19 de março aos 91 anos, dificilmente podiam ser mais consensuais: um exemplo de cuidado extremo com o próximo, que se transformou numa cartilha de condução da sua governança em prol do bem-estar de todos os que trabalhavam consigo direta e indiretamente, uma espécie de protetor em regime de permanência desinteressada. Do mesmo modo, dificilmente se vê replicado no país esse exemplo que todos agora asseguram admirar e a que prestam o tributo da dignidade: novamente um consenso, mas desta vez pouco auspicioso.
O fundador do Grupo Nabeiro manteve sempre a aguerrida vontade de permanecer junto das planícies abandonadas e quentes que o viram nascer, numa altura em que a fome era o principal contributo para combater o desespero: o jogo da sobrevivência implica concentração e foco – os estados de alma ficam para mais tarde, talvez para a digestão quando se dava o caso de haver o que digerir.
Rui Nabeiro decidiu não imigrar nem tão pouco emigrar, como se uma raiva surda o chamasse a ficar. Assim, não abandonava os seus, não se deixava subjugar por uma geografia maldita e, de algum modo, tinha nas suas mãos toda a liberdade de que parecia precisar. Criar um grupo económico com base no café numa imensidão árida como Campo Maior, Portalegre, não será com certeza o mesmo que fabricar frigoríficos no Polo Norte: resulta antes de uma sabedoria a que na altura por certo se chamaria teimosia e agora tomaria o nome de ‘empreendedorismo’.
A criação de emprego para o qual chamou os seus iguais que teimavam em sobreviver naquela geografia ou não sabiam o caminho para sair de lá para fora, foi a força que Rui Nabeiro encontrou para plagiar a parábola do peixe e da cana de pesca. Isso explicou a sua maior dignidade: não se dá esmola – em alternativa cria-se uma parceria em que, sendo um patrão e outros empregados, todos ganham, todos se sentam ao final da tarde à porta de casa com um sorriso cansado nos lábios, bebendo um copo de vinho para saudar um dever cumprido, em vez de fugir para dentro de casa para mastigar uma côdea seca e esconder o traumatismo da caridade.
Foi nessa altura que, sem o saber, Rui Nabeiro começou a escrever (sem o escrever) os relatórios de sustentabilidade que só muitos anos mais tarde haveriam de ser uma moda e depois uma obrigação – e que pouco passam de uma sucessão de invenções promíscuas ditadas por conselheiros de gestão sôfregos de pândega, produzidas em regime de ‘copy, paste’ para não dar muita despesa.
Antes de ser um exemplo a seguir, a gestão social de Rui Nabeiro foi primeiro um disparate que estava votado ao fracasso e de seguida um caminho perigoso que era preciso impedir de alastrar. Claramente, não foi um disparate, mas foi impedido de alastrar com muito sucesso. Na sua morte, todos se lembraram da justiça da sua causa e do quão venerável é agora a sua memória. Hoje, 20 de março, é ainda dia de prestar tributo ao seu exemplo e de guardar silêncio junto do seu féretro.
Amanhã, 21 de março, dia em que o calendário determina que começa a primavera, o mundo pode continuar sem hesitação na bandalheira do costume: talvez a agenda do Trabalho Digno seja felizmente inconstitucional.
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