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Turquia e Estados Unidos divergem na questão curda

Os ataques do regime de Ancara a posições curdas na Síria já começaram. A comunidade internacional, apesar de avisada com grande antecedência, agita-se. Erdogan e Trump voltam a estar em rota de colisão.
  • Recep Tayyip Erdogan
10 Outubro 2019, 07h43

Os ataques que o regime de Ancara levou ontem a efeito contra posições curdas na Síria está a tornar-se num problema internacional, com maior incidência nos Estados Unidos. O governo de Recep Erdogan afirma ter o benefício do acordo de Washington em relação aos ataques, mas a diplomacia parece ter ‘emperrado’ em alguma altura.

O porta-voz da do Ministério dos Negócios Estrangeiros turco, Hami Aksoy emitiu um comunicado que fez chegar ao JE no qual afirma que “é nosso direito fundamental, baseado no direito internacional, tomar as medidas exigidas pela nossa segurança nacional contra qualquer ameaça terrorista emanada da Síria. Até agora, envidamos todos os esforços para implementar as medidas mencionadas em conjunto com nossos aliados, em particular os Estados Unidos”.

Aksoy salienta que “de forma construtiva e de boa fé não poupámos esforços para estabelecer uma zona segura no norte da Síria, com o objetivo de abordar as nossas preocupações legítimas de segurança e abrir caminho para o retorno seguro e voluntário de centenas de milhares de sírios deslocados a suas casas”.

Mas afirma, por outro lado, que “estamos num ponto em que os compromissos das autoridades militares dos Estados Unidos não foram cumpridos. Durante o curso das negociações, a burocracia de segurança de Washington intensificou o seu envolvimento com a organização terrorista [curda] PYD/YPG, que mantém o leste do Eufrates sob ocupação e agiu de maneira incompatível com o relacionamento aliado existente com a Turquia, sem falar no fim desse alinhamento”.

O regime de Ancara insiste em considerar as milícias curdas – que tiveram um papel essencial na vitória da coligação interbacional contra o Daesh – como um grupo terrorista que, nesse quadro, deve ser combatido à luz do Direito internacional. “Não podemos ficar a assistir à organização terrorista PYD/YPG, alma gémea do Daesh e responsável por crimes contra a humanidade cometidos contra o povo sírio”.

Neste quadro, “a Turquia continua empenhada em estabelecer uma zona segura, a fim de combater ameaças à sua existência e proteger a sua segurança, limpando o leste do Eufrates dos terroristas, bem como na promoção da paz, da segurança e da estabilidade na Síria. Uma séria ameaça contra a integridade territorial e a unidade da Síria será assim eliminada e uma base sólida será construída para impedir o ressurgimento do Daesh ou de entidades similares no futuro”. “O presidente Erdogan reiterou isto mesmo ao presidente Trump mais uma vez durante uma conversa telefónica em 6 de outubro”, adianta o comunicado.

Entretanto, o diretor de comunicação da presidência turca, Fahrettin Altun, publicou um artigo no jornal ‘The Washington Post’ onde revela que Erdogan e Donald Trump concordaram “em transferir a liderança da campanha contra o Estado Islâmico para a Turquia. Os militares turcos, juntamente com o Exército Sírio Livre, atravessarão a fronteira entre a Turquia e a Síria em breve”, o que acabou por suceder ontem.

“A Turquia não tem ambições para o nordeste da Síria exceto a neutralização de uma ameaça de longa data contra os cidadãos turcos e de libertação da população local do jugo de bandidos armados”, afirma ainda Altun.

Como era de esperar, a União Europeia (que condenou os ataques) ou a Europa no seu todo não são tidos nem achados na questão. Mas, o problema curdo tem tudo a ver com a Europa. Os curdos, que eram aliados dos turcos seljúcidas quando este povo veio dos confins da Mongólia até às margens da Europa (acabando por formar o império otomano, preponderante no Islão ao longo de vários séculos), foram alvo de diversos acordos a partir do fim da I Grande Guerra – que coincidiu com o fim do império otomano.

Na altura, um primeiro acordo, o Tratado de Sèvres, assinado em agosto de 1920 entre os aliados (os países europeus que ganharam a guerra) e o império otomano, partilhava o império (Palestina, Síria, Líbano parte do Iraque e parte do atual Kuwait) entre a Grécia, a Itália, o Reino Unido e a França, previa um território para a Arménia e a criação de um Estado curdo.

Três anos depois, o acordo foi substituído pelo Tratado de Lausanne – uma vez que Kemal Ataturk, ‘pai’ da Turquia moderna, recusou aceitar um Curdistão independente. O novo acordo também impedia a existência de uma Arménia independente. Tudo isto foi assinado por vários Estados europeus (França e Reino Unido incluídos), em troca de importantes concessões económicas com vista ao fortalecimento da posição europeia no Médio Oriente e na Península Arábica.

Impossível de deixar de fora do problema, será de recordar que poucos anos antes, em 1917, surgia na cena internacional a chamada Declaração Balfour, na qual o governo britânico de então (chefiado por David Lloyd George e onde pontificava Arthur Balfour como chefe da diplomacia), se comprometia a, uma vez derrotado o império otomano, contribuir para a criação de um Estado judaico na Palestina.

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