Há uma semana, perguntei ao eurodeputado Sebastião Bugalho se a UE atravessa uma crise existencial. Atravessa?
Diria antes que a UE está num momento crítico em que está obrigada a fazer reformas profundas, quer para inverter o declínio económico relativo, quer para assegurar a sua autonomia estratégica nos temas da Segurança e Defesa e, também, no tema da Energia, quer, finalmente, para se preparar para os alargamentos que terão de ocorrer num futuro não muito longínquo, por motivos geopolíticos e por razões de princípio e de valores. Todas estas reformas exigem coragem e têm carácter de urgência. Ora, os dirigentes europeus não têm dado provas nem de uma coisa, nem de outra. É aí que tendo a concordar que o projeto europeu corre risco existencial, no sentido mais literal: se a Europa não se reformar com coragem e com urgência, corre o risco de deixar de existir enquanto espaço de integração política, económica e cultural.
O corte de apoios humanitários dos EUA pode desencadear duas crises em simultâneo: uma crise migratória, com origem em África, e uma outra de saúde pública, com o mesmo ponto de partida. O assunto tem sido pensado em Bruxelas?
Sim, mas diria que a resposta europeia ainda é tímida. Há consciência dos riscos: aumento de fluxos migratórios descontrolados e instabilidade sanitária em regiões frágeis. O Parlamento Europeu tem pressionado para que seja reforçada a política de vizinhança e para mobilizar fundos de emergência, mas a máquina executiva ainda está a reagir, também aqui, com lentidão. Mas esta decisão da administração Trump também pode representar uma oportunidade para a UE aumentar o seu soft power nos países mais afetados pelos cortes. Quer ao nível dos programas de apoio humanitário, quer no programa Global Gateway, a UE tem aqui uma oportunidade de estreitar os laços de cooperação, em particular em África, aproveitando até um relativo desinvestimento por parte da China na sua iniciativa Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative).
A imigração preocupa os europeus: 14 países pediram para suspender Schengen. É medo legítimo ou populismo?
Há de tudo. É legítimo que os países que enfrentam pressões migratórias mais intensas procurem aplacar os receios dos seus cidadãos, mas essa postura resulta, muitas vezes, de pressões internas dos movimentos populistas. Uma suspensão de Schengen devia ser algo excecional e não ser usado como bode expiatório de falhas políticas internas, até porque enfraquece uma das conquistas mais tangíveis da UE. É possível conciliar segurança com liberdade de circulação, mas isso exige uma política de fronteiras externa mais eficaz, algo que está ainda longe de ser uma realidade. E exige não ceder às políticas de portas escancaradas da esquerda lírica – veja-se o fracasso da política de manifestações de interesse em Portugal –, nem aos apelos xenófobos para uma Europa fortaleza por parte da direita radical.
A meca do liberalismo deu mau resultado com a eleição de Trump. A desigualdade nos EUA tem ganho terreno. Será uma das razões que levaram à reeleição?
A Iniciativa Liberal não tem por hábito idolatrar pessoas ou países, portanto não subscreve essa qualificação dos EUA como meca do liberalismo. É uma sociedade com aspetos bastante liberais, outros nem tanto e muitos em que a IL não se revê de todo, como o sistema de saúde, ao contrário daquilo que a nossa esquerda, por preguiça de ler a nossa proposta ou por pura má-fé, costuma afirmar. As razões da ascensão de Trump têm sido longamente debatidas e, apesar de uma grande dispersão de argumentos, há algumas conclusões que parecem consensuais. Desde logo, a classe média e a média-baixa, sobretudo fora dos grandes centros, sentiram-se abandonadas por elites políticas e económicas que não valorizam o impacto da globalização, da desindustrialização e da insegurança económica na vida quotidiana de famílias que têm os seus rendimentos reais basicamente estagnados há décadas. Por outro lado, assistiu-se a uma revolta contra a crescente radicalização dos movimentos culturais woke, cuja influência a vários níveis da sociedade americana produziu situações de manifesta discriminação em detrimento de uma parte grande do eleitorado.
A IL não idolatra o homem da motosserra?
Não idolatramos ninguém. Sabe, é também verdade que os indicadores mais usados, como o índice de Gini ou a concentração de riqueza, mostram uma crescente desigualdade na sociedade americana, embora também existam dados que indicam uma mobilidade social acrescida. Ou seja, o famoso top 1% de hoje não é composto, em grande parte, pelas mesmas pessoas que o compunham há uma ou duas décadas. A ilação para a Europa é clara: ignorar as expectativas frustradas e a sensação de abandono ou de desigualdade de tratamento, mesmo em sociedades ricas, é abrir o terreno para populismos. Mas que fique claro que não é rejeitando o liberalismo que se resolve o problema. Pelo contrário, é aplicando generalizadamente políticas liberais que possam criar mais oportunidades e riqueza para todos.
O populismo também tem crescido na UE. Portugal acompanha esta expansão. A IL revelou-se incapaz de travar esta subida nas últimas legislativas. Aliás, é acusada por André Ventura de ser o partido que quer apenas despedir pessoas.
A IL, como sempre, assume a sua quota parte da responsabilidade, mas não mais do que isso. Porque a verdade é que a IL cresceu em votos e mandatos, enquanto outros se afundaram, com evidência até, de transferência direta de votos da esquerda para o Chega. Podíamos e devíamos ter crescido mais, mas a principal responsabilidade é daqueles, com o PS à cabeça. Governaram um país que estagnou há 25 anos e promoveram o Chega como um seguro que lhes garantia a governação para sempre. Quem fracassou foram os partidos do centrão que, em vez de fazer reformas que fizessem o país crescer, permitiram a estagnação e a manutenção de privilégios das suas clientelas eleitorais, alimentando o sentimento de injustiça e de desesperança de muitos portugueses. Quanto às acusações de Ventura, não merecem grande resposta, são o habitual fogo de artifício inconsequente: ele percebe que a IL é um adversário perigoso porque é um partido que quer mesmo mudar o sistema e com uma diferença grande em relação ao Chega: as nossas propostas funcionam.
O seu comentário sobre Rui Rocha foi fatal. Disse que o resultado eleitoral tinha sido insuficiente.
O meu comentário não tinha outro objetivo que não fosse ser honesto com o nosso eleitorado e exigente connosco mesmos. As lideranças devem ser sempre avaliadas pelos resultados, não pelas intenções. O momento exige clareza, não condescendência, e nenhum partido se fortalece com silêncios ou meias palavras. De resto, também disse na mesma ocasião que discutir lideranças antes de discutir os motivos dos resultados eleitorais não fazia sentido, o que penso responde ainda mais cabalmente à sua questão. Aproveito para deixar uma palavra de reconhecimento ao Rui Rocha pelo que fez pela IL. A sua coragem e persistência, em condições políticas e pessoais difíceis, são impossíveis de negar e é generalizadamente aceite que levou a cabo uma boa campanha. No seu mandato de dois anos e meio, tivemos quatro eleições regionais, duas legislativas e umas europeias. Deixa a liderança com a autonomia política e financeira da Iniciativa Liberal assegurada e com representação em todos os parlamentos a que concorreu. Por todo este trabalho, merece o nosso agradecimento.
Tenciona recandidatar-se à liderança?
Não. Tenho um mandato para cumprir, não acredito em ‘regressos’ e a IL não padece de sebastianismos. De resto, já há vários partidos de ‘um homem só’, não iremos certamente engrossar esse pelotão.
Esta legislatura chegará ao fim ou o Chega tem o caminho aberto para forçar eleições e tentar ganhar?
Já me enganei redondamente uma vez sobre a duração do governo de maioria absoluta de António Costa, serviu-me de lição. Mas acho que todos concordarão que um perfil oportunista como o de Ventura não hesitará em provocar mais uma crise política se vir nisso a possibilidade de concretizar o seu sonho, diria mesma a sua obsessão, de exercer o poder.
Voltemos à Europa: a crise industrial na Alemanha terá consequências para a economia europeia, sendo a nossa uma economia ‘hub and spokes’: um motor, o alemão, que faz produzir uma série de indústrias conexas. Como analisa esta situação, que riscos identifica?
É uma situação que preocupa e que pode vir a ser grave para a economia portuguesa, já que a Alemanha é o segundo principal destino das exportações portuguesas com quase 1/8 do total. Mesmo se descontarmos as exportações de veículos da Autoeuropa, as exportações para a Alemanha representam quase 3% do PIB português, um valor tão elevado quanto impossível de ignorar. A Alemanha continua a ser o coração industrial da Europa e a sua travagem afeta toda a cadeia de valor. Se a Alemanha trava, a Europa perde tração — e Portugal derrapa, já que sofre duplamente em vertentes em que a Alemanha é importante qualitativa e quantitativamente: pela queda da procura externa e pela incerteza nos investimentos. A reação de Portugal a estes riscos tem de se inserir dentro da estratégia nacional de crescimento que a IL há tanto tempo anda a propor e que se baseia no reforço da competitividade das nossas empresas por duas vias: a redução dos custos de contexto – a começar pelos impostos e pela burocracia – e o fomento da produtividade – reforço do investimento produtivo nacional e estrangeiro e na qualificação da nossa força de trabalho.
A Comissão von der Leyen está a procurar limpar a burocracia europeia e a travar o excesso de regulamentação. Como avalia este esforço? Será suficiente ou é para inglês ver?
Considero que continua a haver motivos para algum ceticismo. Convém recordar que este não é o primeiro esforço – existiram já uma meia dúzia – concertado de reduzir a burocracia e nenhum produziu resultados significativos ou duradouros. É verdade que, no discurso, o problema está identificado e que a necessidade de desburocratizar e de simplificar é reconhecida por todos. No entanto, isso já aconteceu no passado, e não foi suficiente para se sobrepor a uma cultura burocratizante há demasiado tempo vigente nas instituições europeias (Comissão, Conselho e Parlamento). Até ao final do ano, estarão em discussão pelo menos seis pacotes de simplificação, os designados pacotes Omnibus. Veremos se a sua implementação traz benefícios reais para famílias e empresas, ou se o papel escrutinador do Parlamento Europeu pode ter aqui uma função de exigência em relação à redução da burocracia excessiva que é hoje um risco real e concreto para a competitividade da economia europeia.
A guerra das tarifas está para durar. Tem confiança no parceiro americano? Se as tarifas avançarem, quais as áreas que vão sofrer mais?
Os Estados Unidos deixaram, infelizmente, de ser um parceiro comercial fiável, estável e previsível, pelo que o Comércio Internacional é mais uma área em que a União Europeia tem de se mostrar ágil, rápida e corajosa. A relação transatlântica continua a ser vital, mas não pode ser ingénua. Os EUA agem em função dos seus interesses e a UE deve fazer o mesmo, falando a uma só voz, especialmente em matérias comerciais. É claro que, para um liberal, o interesse da Europa a prazo é indissociável da defesa do princípio do comércio livre, esse pilar do liberalismo que tem sido o motor da fase de maior crescimento económico e de bem-estar na história da humanidade. Todos os setores exportadores para os EUA irão sofrer, sendo que os setores de produtos farmacêuticos, de produtos químicos, de maquinaria e de alguns produtos alimentares premium dependem especialmente do mercado americano, pelo que devem merecer especial atenção. Para termos uma ideia, só nestes setores Portugal exportou mais de 3,5 mil milhões em 2024, ou seja, quase 1,2% do nosso PIB. São impactos potencialmente grandes.
Quanto nos devemos preocupar com este alinhamento: mais defesa europeia e mais países liderados por partidos com a impressão digital da direita radical ou da extrema-direita?
Devemos, evidentemente, estar atentos. A defesa europeia não pode tornar-se refém de agendas radicais ou nacionalistas. Precisamos de mais Europa na defesa, sim — mas com um claro compromisso com os valores fundacionais da União. A pior resposta à insegurança seria entregar a sua gestão a quem quer corroer o projeto europeu por dentro. Este assunto remete, de novo, para o início desta entrevista: a União Europeia precisa urgentemente de reformas, também no seu funcionamento, para garantir que problemas como este têm uma solução dentro da arquitetura institucional da União sem exacerbar os riscos existenciais de que já falámos.
Demorou muito tempo até a comunidade internacional condenar a política de pessoas e terra queimada em Gaza. Ainda assim, a destruição continua. O que poderia ser feito mais pela UE?
Concordo que a condenação das atrocidades cometidas por Israel tardou. Percebe-se que a defesa do direito à autodefesa de Israel se sobrepôs ao mais elementar juízo de proporcionalidade. Percebe-se que considerações geopolíticas relacionadas com as forças autocráticas que combatem Israel se sobrepuseram à obrigação de minimizar o sofrimento da população, incluindo milhares de crianças, de Gaza. Percebe-se, mas já não se aceita. A União Europeia não deve ignorar os interesses geopolíticos em jogo, mas está na hora de ser mais firme com Israel, a começar pela suspensão do acordo de associação e dos programas de cooperação ainda vigentes. Condenar violações do direito internacional de forma inequívoca — seja qual for o autor. A UE tem instrumentos diplomáticos, comerciais e humanitários que pode usar com mais coragem. Neutralidade não pode ser sinónimo de passividade. O mundo repara quando a Europa se cala — e cobra-lhe esse silêncio.
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