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Fernando Correia: o rugido do jornalista que não abdica da isenção

Fernando Correia guiou o Jornal Económico numa visita a um estádio da Alvalade deserto, que contrastava com a preenchida memória do jornalista de 81 anos.
16 Março 2017, 14h31

Era pela porta 10 A que os jogadores entravam no antigo estádio do Sporting. “Ainda entram”, pormenoriza Fernando Correia. A porta, ornada à antiga, em ferro timbrado a verde, com dois leões dourados, perfilados e opostos, em modo de guerrilha, tem ali a sua segunda vida. “Quando vêm do autocarro entram no estádio pelo portão e depois passam pela mítica porta”. A voz de Fernando Correia, pujante, que não denuncia a idade, ecoa na zona VIP do estádio e mistura-se com outra.

Uma guia explica a quem inicia a visita pelo Alvalade XXI que o Sporting é o terceiro clube, entre todas as modalidades, com mais títulos internacionais. Deixamos de a ouvir ao seguirmos para as bancadas. “Quando não tenho que fazer também venho ver o meu clube; e grito”, atira o jornalista e sócio 211 do Sporting Clube de Portugal.

“O jornal do Sporting era ali”, aponta, desde a bancada central Poente, para o lado aposto. “Portanto”, continua, “vi este estádio ser construído de raiz”. “As sensações ao entrar são sempre as mesmas: é como se fosse sempre a primeira vez”, conta. Mas desengane-se quem pensa que a razão para tal sensação é apenas o sportinguismo. Não é. “Isto acontece com qualquer repórter de rádio, seja qual for, desde que seja do Sporting. Os do Benfica sentirão o mesmo noutro estádio”.

Saímos com Fernando Correia, mas, ao mesmo tempo, entramos em sua casa. “Sem demagogia, sinto-me em casa. É óbvio que temos a nossa casa e a nossa família, mas este é outro tipo de família. É outro fervor, outra coisa; não quero misturar as famílias, mas quando nasci fizeram-me logo sócio do Sporting”.

A verdade que dói
Poderá o sócio de um clube respeitar a isenção que se pretende no jornalismo? Afinal de contas, Fernando Correia é jornalista e a reportagem é a sua paixão. É de forma pragmática, como o estilo que a profissão lhe exige, que o repórter responde à pergunta: “Ter de gritar com a mesma intensidade os golos do adversário, tal como se fossem os do meu clube, dói, mas temos de disfarçar – dizer a verdade mesmo que nos doa”.

Passaram 10 anos de jornalismo até que Fernando Correia se dedicou ao desporto. E a razão por detrás da mudança foi a verdade. Verdade que doía, que apertava o coração. Uma verdade que não queria reportar. Fernando fala sobre a guerra colonial como se estivesse a ver a morte sentar-se nas cadeiras vazias do estádio.

“Fui mandado muito cedo para Angola, Moçambique e Guiné. E parti infantilmente feliz, numa ingenuidade… quando percebi que tinha de relatar a morte de uma série de gente, numa guerra de irmãos…”, desabafa, num momento em que não se percebe se lhe faltam as palavras ou simplesmente não as quer dizer. Mas continua. “Quando me apercebi de que havia uma intenção de tornar aquilo num orgulho nacional… isso fez me uma grande confusão. Era muito jovem e tinha uma ambição desmedida de ser um grande jornalista e um grande repórter, sobretudo repórter…”.

“Uma dor profunda, muito profunda” foi o que o repórter sentiu quando, aliado ao cenário já descrito, soube que as suas reportagens eram censuradas em Portugal. “Quando cheguei não sabia se queria continuar nesta vida ou não”, explica Fernando Correia, que estudou em Inglaterra durante vários anos.

“Fiz muitas reportagens ainda da família a despedir-se de gente que ia para a guerra; era tremendo, dramático. E o regresso dos mortos, muitos caixões, era terrível – os barcos carregados de urnas”, conta Fernando, no sentido denotativo do verbo, de um conto muito presente na sua mente. O jornalista desvia o olhar do interlocutor. Vislumbra o nada entre as bancadas desertas de Alvalade. Parece que ao olharmos para ele vemos aquilo que apenas ouvimos. É esse o poder de um bom contador de histórias, e é isso que Fernando Correia tem vindo a fazer nos seus 60 anos de profissão.

Restavam-lhe duas opções: “Ou voltava para Inglaterra ou arranjava dinheiro para emigrar, como fez muita gente na altura. Mas não tinha dinheiro, então optei por continuar cá; fui ter com o Artur Agostinho e perguntei-lhe se poderia ir para a secção de desporto, fosse o que fosse”. Assim nasceu o relatador desportivo Fernando Correia, marcado pela realidade de uma guerra que não queria nem se podia compreender.

Ainda assim, recorda muitas reportagens antes de se dedicar ao que mais tarde culminou com livros sobre o desporto nacional. Fernando gesticula com veemência ao falar dos trabalhos que fez aquando do incêndio do Chiado, da inauguração da Ponte sobre o Tejo; da ida a Cuba, onde conheceu Fidel Castro, ou quando o mandaram para a Alemanha dividida: “Foi extraordinário e são essas as coisas que não se esquecem”, diz.

Depois de reportagens, relatos, golos inesquecíveis e livros de desporto do “maior biógrafo vivo do Sporting”, Fernando Correia quis aprofundar as narrativas. “Quero ir ao encontro da história, como um jornalista faz. Tão depressa vou ao fim da rua como ao fim do mundo”. Para escrever um dos livros, o repórter não teve de sair de casa.

Um drama “tremendo”
Os olhos de Fernando mudam radicalmente; tornam-se mais tristes, mais pesados quando falamos da mulher, Vera, que foi diagnosticada com Alzheimer há alguns anos. “Não há cura, e o médico, como todos os outros, fica limitado”, explica, antes de prosseguir, desamparado: “Nós não conseguimos conceber um cérebro apagado.”

“É disso que se trata. Nos exames vêem-se pontos vermelhos, iluminados, de atividade cerebral, que se vão apagando; não conseguimos perceber o que é uma pessoa ter corpo, estar vivo, mas não ter vida”. Os encontros fazem-se no ‘piso 3 quarto 313’, título do livro publicado em 2015. “Para a família é um drama tremendo, que quer acarinhá-la e não tem retorno. Não olha para nós e se olha não tem qualquer reação”.

Fernando rejeita a ideia de se estar mais conformado à medida que o tempo passa e lhe arranca o amor. “Não é uma situação que me leve a conformar-me. Estou é habituado. Faz parte da minha rotina, somos um animal de hábitos”, afirma. Esses passam por não dar azo ao pensamento: “Se estiver em casa a pensar sozinho, posso enlouquecer”. A voz do radialista parece ecoar no estádio. “Mesmo assim na cama ainda tenho momentos dolorosos”, diz.

Levantamo-nos para aproveitar melhor a luz que nos aquece durante a conversa. “Isto é patinagem artística”, diz, enquanto desce a rampa que faz a passagem sobre o conhecido fosso do estádio. Capturamos a face da voz de tantas histórias contadas ao nível do relvado. Fernando Correia confessa que já tem o seu próximo livro pronto. Está entregue; vai sair em Setembro, “por questões estratégicas”.

“E se eu fosse Deus?” é sobre os sem-abrigo. “Fi-lo porque as pessoas têm de conhecer a realidade, é a missão do jornalismo”, diz, nunca se separando da profissão.

Novo livro a caminho
Fernando Correia faz uma visita guiada a sítios desconhecidos que servem de casa a quem não a tem. O guia é um sem-abrigo, que o autor via passar todos os dias na mesma rua. “Um dia fui ter com ele e abordei-o. Levou-me a lugares que eu não sabia que existiam; lugares tremendos, dolorosos. O livro é um murro no estômago”.

Um entregue na editora, outro a ser editado no pensamento: “O próximo, está na minha cabeça, vai ser sobre a violência doméstica. Há jovens, hoje em dia, que acham perfeitamente normal a violência entre namorados, o conceito dele é este: dar bofetadas ou pontapé é normal. Isso repugna-me, que um homem tenha de bater numa mulher ou vice-versa”.

“É paixão irracional, como muitas vezes acontece no futebol”, mas nem o desporto-rei pode ser vivido assim; não é vivido assim por Fernando Correia. O jornalista recorda um episódio para se fazer entender. Uma das suas filhas pedira-lhe para assistir a um Sporting-Benfica – que terminou com derrota caseira por 5-3 – na cabina, onde Fernando fazia o relato. “A minha filha, com 12 ou 13 anos, sentou-se entre mim e o Pedro Gomes, que comentava. O jogo começou bem, mas acabou tragicamente para nós. E a cada golo que o Benfica marcava, olhava para o lado e a minha filha estava a chorar compulsivamente. Foi duplamente doloroso para mim estar a relatar um jogo em que o Sporting perdia e ela chorava. Tive de acabar o relato na mesma forma, mas quando acabou disse-lhe: “Podes vir sempre que quiseres ao futebol comigo, mas o futebol é uma coisa, a nossa vida é outra. Isto não te pode fazer chorar, quando muito pode dar-te a alegrias, ou, então, uma tristeza que depois passa. Tem de passar; não pode ser levada para casa”.

Com histórias na ponta da língua a assaltarem-lhe a memória em cada direção que olha, Fernando Correia, com 81 anos, quer ir à procura de mais. Mas os mais de 20 livros escritos não retiram o prefixo ‘pseudo’ antes de ‘escritor’, como o próprio se autodenomina. “Como jornalista, vou à procura do assunto. Não vou fazer de conta que sou o João Tordo, de quem gosto muito, sentar-me à secretária para escrever e esperar que saia uma obra linda. Antes de ser pseudoescritor sou jornalista; portanto, quero ir a procura da história, para depois a contar”.

Não se prevê que as ideias, os projetos e ambições abrandem na vida de Fernando. “Ai do Homem que não tem sonhos”, diz, e aponta para um que gostaria de ver realizado: “Uma televisão de clube que pudesse ser vista por todos”. Fernando Correia, debaixo das letras que compõe o nome do clube que ama, escreve por cima a palavra isenção e pede que o deixem continuar a sonhar.

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