O Jornal Económico está na academia este mês. O ponto de partida é a Universidade de Lisboa, a maior do país. Luís Ferreira, o Reitor, abre o ciclo de entrevistas que vamos publicar ao longo de fevereiro numa antevisão de 2024 no Ensino Superior e na Ciência em Portugal.
Neste entrevista, Luís Ferreira junta aos problemas estruturais e crónicos do sector, outros que resultam da antecipação das eleições legislativas e deixa perguntas seguramente com interesse para o futuro inquilino do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES): Vai continuar a revisão dos regulamentos, estatutos e diplomas que tinham sido lançados? Vai manter-se a fórmula de financiamento recentemente introduzida?
Na sua perspetiva, que desafios enfrentam as Universidades em 2024?
Permita que comece por lhe referir que Portugal e o mundo enfrentam hoje grandes desafios que decorrem de uma evolução demográfica preocupante, da permanência de acentuadas desigualdades sociais, económicas e territoriais, do impacto das alterações climáticas, das transições digital e verde, das mudanças tecnológicas, das dificuldades do crescimento económico e da produtividade. Ora, nenhum destes desafios pode ser superado sem mais conhecimento, sem mais ciência, sem mais inovação. O envolvimento e a participação ativa da Universidade é essencial para que tal seja possível. Não tenhamos dúvidas: sem mais investigação não teremos salvação. E investigação em todas as áreas, incluindo as Ciências Sociais e as Humanidades.
A estas preocupações é necessário acrescentar os problemas próprios das universidades.
Quais são?
Entre estes problemas contam-se o subfinanciamento crónico, o envelhecimento do corpo docente, que corre a par com a precariedade laboral dos seus mais jovens investigadores, a exiguidade e a baixa taxa de aprovação de projetos de investigação dos concursos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a obsolescência das infraestruturas tecnológicas e laboratoriais, a ausência de manutenção do edificado, a dificuldade de contratação de trabalhadores qualificados necessários para fazer face a tarefas cada vez mais complexas, a problemática da saúde mental dos estudantes e a necessidade de atrair mais talento a nível internacional.
Atrair mais alunos estrangeiros?
Não só. Atualmente, as universidades não podem deixar de ter uma visão internacional. Têm de recrutar os melhores estudantes, os melhores professores e os melhores investigadores e competir com as suas congéneres a nível mundial. Assim o exige a resposta ao vasto leque de questões globais complexas, destacadas pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, a qual requer um forte empenho e uma cooperação a nível global das universidades mais apetrechadas no grande propósito de contribuir decisivamente para um mundo melhor.
As questões que referiu são todas estruturais, mas 2024 tem as suas especificidades, nomeadamente a quase certeza de que vai haver um novo ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Como antecipa este cenário de mudança?
O início deste ano está marcado pela incerteza associada à política relativa ao Ensino Superior e à Ciência em Portugal, que será seguida pelo governo que resultar das eleições de 10 de março. Embora esteja afastado o cenário da aplicação de um regime duodecimal nos primeiros meses do ano, uma vez que foi possível garantir a aprovação do Orçamento de Estado para 2024, há um conjunto de incertezas que surgem no horizonte e que preocupam as Universidades.
Falemos delas.
Em primeiro lugar, não foi possível negociar e assinar um contrato de legislatura, apesar de o governo ter estendido o contrato vigente até ao fim de 2024. Esse acordo tem vindo a desempenhar um papel importante para as Instituições de Ensino Superior (IES), porque garante a previsibilidade e a estabilidade necessárias para um adequado planeamento estratégico e financeiro.
Em segundo lugar, resulta pouco claro se vão prosseguir os trabalhos de revisão de alguns dos regulamentos, estatutos e diplomas que o atual executivo tinha lançado ou estaria prestes a lançar. Incluem-se neste conjunto as revisões do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) e os Estatutos da Carreira Docente Universitária e da Carreira de Investigação Científica (ECDU e ECIC).
Finalmente, dúvidas surgem quanto à manutenção, na sua configuração atual, da recentemente introduzida fórmula de financiamento das IES.
A ministra Elvira Fortunato fez da questão do financiamento uma das prioridades da sua ação governativa e em julho apresentou aos reitores e presidentes dos politécnicos um novo modelo. O que opina da solução proposta?
Desde a primeira hora que a ULisboa se tem mostrado muito crítica relativamente a alguns dos aspetos relacionados com a fórmula para o cálculo da dotação orçamental para as IES que foi utilizada pelo MCTES na distribuição do OE para 2024. Desde logo, porque a referida fórmula apenas considera a componente de atividade letiva, através da contabilização do número ponderado de estudantes. Faltam claramente componentes de desempenho que possam ter em conta a qualidade e a maturidade do corpo docente, a eficiência formativa, a relevância e o impacto da investigação, a internacionalização, a inovação e a transferência de conhecimento para a sociedade. É estranho que deixe de haver qualquer distinção entre licenciaturas e mestrados e que, ao contrário do que é a tendência da União Europeia, haja um encurtamento da diferenciação entre os dois subsistemas do Ensino Superior (Universitário e Politécnico).
Em sentido contrário, é de elogiar a proposta (ainda não concretizada) de autonomizar o financiamento dos Serviços de Ação Social, tornando-o proporcional ao número de camas ocupadas em residências universitárias e ao número de refeições servidas nas unidades alimentares.
O facto de a inflação continuar com valores elevados tem, naturalmente, impacto em quase todas as aquisições de bens e serviços, no custo da energia elétrica e do gás natural, e no aumento dos preços dos principais materiais de construção. Por outro lado, o aumento dos salários da administração pública, ainda que muito justo e necessário, vai introduzir uma grande pressão sobre o orçamento e, eventualmente, conduzirá à necessidade de introdução de um reforço da dotação às IES por parte do MCTES.
Além do ensino, as universidades têm cada vez mais uma forte componente de investigação. Na investigação, como antevê 2024 nomeadamente na vertente do investimento?
No que respeita a um dos pilares fundamentais da atividade das Universidades, a investigação, tem-se verificado, desde 2020, que os fundos nacionais do OE têm vindo a diminuir em percentagem do PIB. A verba dedicada a I&D, em 2023, correspondeu a 0,73% do PIB, representando os fundos nacionais apenas 0,33%, valores idênticos aos de 1991, levando a Reitora do ISCTE, Maria de Lurdes Rodrigues, e o Vice-Reitor Jorge Costa, no livro “O Futuro da Ciência e da Universidade”, a falarem de “desistência” do País relativamente ao seu sistema científico. Isto significa que “mais de metade do OE de I&D está baseado em fundos europeus e, assim, sujeito as regras e orientações de Bruxelas – e não a estratégias nacionais de I&D”, como referem os referidos autores.
Como boa notícia é de referir que o valor orçamentado para as transferências oriundas de outras instituições da Administração Pública, para a generalidade das Universidades, subiu significativamente face ao ano anterior. Grande parte desse aumento ficou a dever-se aos vários projetos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que se encontram em execução e que em 2024 registarão um acréscimo de atividade. É o caso do financiamento para a construção de residências universitárias e para a implementação de medidas que visam a melhoria do desempenho energético dos edifícios públicos.
De referir, ainda, que está em curso a apresentação de candidaturas ao Programa Impulso Mais Digital. Este programa, enquadrado no PRR e que em boa hora foi lançado pelo Governo, inclui as seguintes quatro submedidas: Reforma e Modernização das Ciências Agrárias, Reforma e Modernização da Medicina, Reforço das Competências Digitais, Inovação e Modernização Pedagógica no Ensino Superior.
A Universidade de Lisboa promoveu há cerca de um ano uma reflexão profunda sobre a saúde mental – I Encontro “Pausa Para a Saúde Mental: Uma reflexão no Ensino Superior”. Que outras iniciativas estão a levar a cabo?
A preocupação com a saúde e o bem-estar de todos os membros da comunidade académica continua a ser uma preocupação central da ULisboa. Para além das iniciativas e medidas que já se encontram em execução e dos estudos que, entretanto, foram concretizados, a ULisboa continuará a apostar num programa integrado para a promoção da saúde mental, consolidando mecanismos de apoio psicológico e projetos que privilegiam abordagens preventivas. Esperamos que esta iniciativa possa ser reforçada por via do Programa para a Promoção da Saúde Mental no Ensino Superior, financiado pela Direção-Geral do Ensino Superior.
A Universidade de Lisboa nasceu da fusão entre as duas instituições da capital: Universidade Clássica e Universidade Técnica. Dez anos depois, a missão continua a ser cumprida?
Na ULisboa sentimos a enorme responsabilidade de proporcionar aos jovens que escolhem a nossa instituição uma formação ampla. Esta deve capacitá-los para enfrentar os grandes desafios que a humanidade vai conhecer nos próximos tempos, como cidadãos conscientes, responsáveis, tecnicamente bem preparados e eticamente exemplares, capazes de contribuir de forma empenhada para o avanço e o bem-estar da sociedade.
Enquanto universidade de Ensino e Investigação, a ULisboa continua a fazer uma forte aposta nos seus investigadores e na ciência, discutindo ciência, estimulando a partilha e colaboração, divulgando oportunidades, ajudando candidaturas, atribuindo prémios científicos e valorizando a investigação em todos os seus concursos para pessoal docente e investigador. Assim o governo, diretamente ou através das suas agências, desempenhe o seu papel. A investigação não pode deixar de ser a pedra angular de uma universidade que olha o futuro, questionando permanentemente o passado e o presente, na procura de soluções inovadoras para os problemas que as sociedades enfrentam.
A inigualável riqueza de uma Universidade reside na diversidade e complementaridade dos seus saberes, na pluralidade de opinião dos membros da sua Comunidade, na permanente troca e partilha de problemas, na procura e identificação de soluções. O verdadeiro espírito universitário deve promover permanentemente a discussão, a colaboração e o sentimento de partilha e de união.
Num ano em que celebramos o 10º Aniversário da renovada Universidade de Lisboa, importa reforçar que a nossa missão não pode ser alheia à ligação que estabelecemos com o mundo. Realçar o papel da Cultura na vida académica e contribuir para o seu incentivo torna-se, assim, fundamental para a construção e consolidação de uma Universidade que desejamos continuar a ser: em constante melhoramento, mais solidária e aberta ao mundo.
A Universidade de Lisboa em números
Herdeira de uma tradição com mais de sete séculos, a Universidade de Lisboa ganha a sua atual configuração em julho de 2013, após a fusão das anteriores Universidade Técnica de Lisboa e Universidade de Lisboa. É hoje a maior universidade portuguesa. Composta por 18 Escolas – Faculdade de Arquitetura; Faculdade de Belas Artes; Faculdade de Ciências; Faculdade de Direito; Faculdade de Farmácia; Faculdade de Letras; Faculdade de Medicina; Faculdade de Medicina Dentária; Faculdade de Medicina Veterinária; Faculdade de Motricidade Humana; Faculdade de Psicologia; Instituto de Ciências Sociais; Instituto de Educação; Instituto de Geografia e Ordenamento do Território; Instituto Superior de Agronomia; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas; Instituto Superior de Economia e Gestão; Instituto Superior Técnico – e mais de 100 Unidades de Investigação, conta com cerca de 52 mil estudantes, 4.100 docentes e investigadores, 2.500 funcionários não docentes e mais de 380 cursos conferentes de grau.
Taguspark
Ed. Tecnologia IV
Av. Prof. Dr. Cavaco Silva, 71
2740-257 Porto Salvo
online@medianove.com