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Mário Campolargo: “Até ao final do ano, Portugal terá quatro novas estratégias nacionais ligadas à tecnologia”

O secretário de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa afirma, em entrevista ao Jornal Económico, que os planos para os Territórios Inteligentes (Smart Cities), Inteligência Artificial, Dados e Web 3.0 serão lançados ainda este trimestre.
  • Mário Campolargo | Cristina Bernardo
10 Outubro 2023, 12h13

O secretário de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa, Mário Campolargo afirma, em entrevista ao Jornal Económico no âmbito do Quem é Quem nas TIC em Portugal 2023-2024, que os planos para os Territórios Inteligentes (Smart Cities), Inteligência Artificial, Dados e Web 3.0 serão lançados ainda este trimestre.

Sobre a assistente virtual à base de ChatGPT, criada pelo Governo e empresas como a Defined.ai para apoiar nas dúvidas sobre o cartão de cidadão, revela que fez 9.400 conversações com os cidadãos desde que foi lançada, no início do verão.

O governante admite ainda uma “dificuldade burocrática” que atrasou o desenvolvimento da rede de test beds, do Plano de Recuperação e Resiliência, porém esses laboratórios de experimentação já resultaram em 50 produtos/serviços terminados e 200 em execução.

O processo de digitalização do país, na vertente do sector privado e do público, está de boa saúde?

Eu acho que sim. Vamos começar pela Administração Pública. Ao longo do tempo, acho que temos dado indicações muito claras de uma Administração Pública que se quer modernizar, utilizando o digital como um mecanismo que acrescenta valor e simplifica a vida dos cidadãos e das empresas. Estamos, neste momento, a relançar com condições de segurança mais estritas um Cartão de Cidadão [CC] que vai ter a opção de contactless, o que vai permitir um campo de utilização um pouco mais alargado. Depois, introduzimos a ideia de uma carteira digital ou Chave Móvel Digital [CMD], pioneiras a nível europeu, que permitem que tenhamos em suporte digital todos os nossos cartões de identificação e outros, como o cartão de doador de sangue, que está disponível com mais informação do que alguma vez o velhinho cartão em papel poderá dar. E também porque, em colaboração – e faço aqui essa ponte – com o sector privado, fizemos recentemente uma assistente virtual baseada em ChatGPT, ou naquilo que, em termos mais genéricos, se pode considerar Inteligência Artificial [IA] generativa. Entende e comunica em linguagem natural e em português para satisfazer uma necessidade que identificámos: a das pessoas que não tinham CMD e queriam ter ou daquelas que não a utilizavam regularmente porque perderam os códigos. Com uma interação muito intuitiva, natural, ajuda-as a saber como resolvem esse problema. Sempre digo que é muito importante nós lançarmos novas ideias e percebermos o impacto. É importante entendermos que essa assistente virtual, que foi lançada há quatro meses, já estabeleceu 9.400 conversações com o cidadão português e mais de 14 mil interações, porque uma conversa pode ter mais do que uma interação. Portanto, 9.400 cidadãos portugueses que no estrito domínio da CMD encontraram na assistente virtual uma maneira de resolverem o seu problema.

Esse projeto da AMA, criado em parceria com a Microsoft, Defined.ai e DareData Engineering, é um piloto. Que seguimento terá?

Estes números correspondem precisamente a este piloto. Um dos desafios que Portugal enfrenta é a atração de mão-de-obra estrangeira. Essa mão-de-obra que vem trabalhar para Portugal, da mais avançada, vem para abrir startups, investir ou trabalhar num dos vários sectores em que temos necessidade, interage com a Administração Pública em línguas que não são necessariamente o português, o que obriga a que as nossas entidades administrativas tenham esta flexibilidade com o inglês, francês, quiçá até o espanhol. Mas quando pensamos em determinadas línguas com menos familiaridade para as pessoas da Administração Pública, uma assistente virtual capaz de entender as pessoas, estabelecer uma relação em linguagem natural com elas e dar-lhes resposta pode ser algo importante. Não estou aqui a anunciar nada. Estou a dizer que o trabalho que fizemos com uma assistente virtual em português sobre uma área específica contém em si próprio a semente para alargarmos o número de áreas nas quais essa assistente virtual pode ajudar, como as línguas.

A IA teve um boom este ano. Em Portugal, quem ficará a cargo da regulação? A vizinha Espanha já tem uma agência de supervisão escolhida…

O AI Act ainda está a ser discutido entre o Conselho, o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia. Nós próprios, todos os dias, estamos a contribuir. E cada vez mais se reconhece a necessidade de haver uma articulação a nível europeu das entidades que vão fazer a supervisão, que também são relevantes noutros domínios, como o Digital Services Act [DSA – Lei dos Serviços Digitais] e o Digital Markets Act [DMA – Lei dos Mercados Digitais]. Ou seja, há uma preocupação com a ambição que a Europa tem em todos estes domínios e com a necessidade de englobarmos expertise nacional e europeia na tentativa de definir as entidades não só para responder a este ou àquele quadro, mas com uma dimensão mais holística. Por exemplo no caso do DSA, teremos de indicar até fevereiro a entidade que será responsável do lado português. Fá-lo-emos. E teremos de articular internamente como é que essa ou essas entidades também se inter-relacionam. Na área da IA, os conteúdos são de particular importância por causa da desinformação. Contudo, há uma dimensão muito tecnológica, uma dimensão das grandes plataformas que, no contexto do DSA, tem a ver com a não dominância dos grandes players internacionais na gestão dos conteúdos. O que Portugal está a fazer é olhar para estas várias dimensões e, em devida altura, faremos a indicação da entidade respetiva. Espanha é um caso particular, porque corresponde a uma secretaria de Estado que, desde o início, tem no seu próprio nome secretário de Estado da Inovação e da IA, pelo que fez, desde muito cedo, essa definição ao criar uma entidade específica para a área. Em muitos outros países, é o regulador de telecomunicações que herda esta dimensão mais digital, que é supletiva, mas que se baseia muito no conhecimento e na infraestrutura digital do país. Seguiremos o nosso próprio caminho em devida altura.

Acredito na colaboração público-privada, mas é necessário que a Administração Pública não fique dependente das entidades privadas que fornecem serviços e seja capaz de comprar bem e definir o que é necessário

E os avanços tecnológicos nos privados?

Sobre o que não é Administração Pública, acho que os números falam por eles próprios. As nossas exportações são cada vez mais baseadas em exportações que exploram a via do digital, passando de 5% para 12% nos últimos seis anos. Temos os nossos unicórnios que garantem que Portugal tem uma relação entre número de unicórnios e o número de pessoas [per capita] é melhor que a de França ou de Espanha e temos multiplicado por cinco os trabalhadores em Portugal associados à dimensão tecnológica. Portugal, podendo dizer Lisboa, Porto e outras áreas, é considerado polo de atração para o empreendedorismo, diria europeu ou global. Na fintech atraímos empreendedores de todo o mundo e vemos que em Portugal há cada vez mais investimento estrangeiro de empreendedores que encontram aqui um ecossistema importante. Qual é o ecossistema? Por um lado, o investimento de grandes empresas. Talvez não seja de menosprezar os investimentos que são feitos na área do 6G com laboratórios e investimentos a nível mundial de grandes fabricantes, como a Nokia, a prepararem o futuro. Estamos a falar de investimentos de empresas estabelecidas a nível mundial, que permitem mais formação e melhor formação nas universidades. Ou quando investimos no Emprego + Digital, com o objetivo de formarmos 200 mil pessoas, e no Líder + Digital, porque precisamos de líderes capazes de absorver a dimensão digital e a embebê-la no dia a dia das empresas, ou os vouchers para qualquer trabalhador se formar, potencialmente, tendo feito o diagnóstico de competências digitais através da plataforma Academia Portugal Digital.

O segundo aviso para a próxima tranche dos vouchers para startups abre mesmo em outubro, como diz a Startup Portugal?

Não esqueçamos que estamos a investir fortemente nas startups. Já foram definidos 749 vouchers para darmos a startups, porque apresentaram ideias concretas de produtos ou serviços que são verdes e digitais. Porque é que este processo demorou um bocadinho mais? Faltam-nos alguns instrumentos nos quais estamos a trabalhar: identificarmos quem são e quantas são as startups. Tivemos a lei no ano passado para codificar legalmente qual é a definição [de “startup”], que era muito importante para nós. O que estamos a fazer é, com base nessa definição, repertoriar todas as entidades (pequenas e médias empresas com estas características inovadoras) para ficarmos com um catálogo ou uma lista de todas as startups.

Então, é possível que o número de startups em Portugal, o oficial que é conhecido do dashboard da Startup Portugal, diminua nesse processo de listagem?

Pode diminuir ou pode aumentar. As startups são muito voláteis, umas não sobrevivem e outras estão dormentes durante algum tempo e encontram um boost nos vouchers – é aí que eles fazem a diferença, alavancando a startup, quiçá para depois continuar, porque o objetivo não é mantermos startups, mas que cheguem a scale-ups ou unicórnios. Independentemente de algumas dificuldades que tivemos, genericamente, nas plataformas das Agendas [Mobilizadoras], ultrapassadas, tivemos um número recorde de candidatos para beneficiarem desse voucher. Não sei se posso dizer que é em outubro, mas a Startup Portugal está comprometida em lançar o mais rápido possível essa segunda fase.

O ano de 2023 fica marcado por milhares de despedimentos em tecnológicas, inclusive nos unicórnios portugueses. Há muito tempo que estas empresas têm sugado o talento que poderia estar na Administração Pública. A tendência está a começar a inverter-se? Com medo de se lançarem nestas startups, os recursos humanos do digital voltaram a preferir trabalhar para o Estado?

Houve aqui um esforço da Administração Pública para reconhecer que a carreira ligada à informática é uma carreira super importante. Quando temos uma assistente virtual e ela funciona bem, o que deveríamos fazer logo era alargá-la. Isso necessita de recursos humanos e investimentos. É verdade que há uma escassez de recursos humanos e também é verdade que, ao nível global, as startups acabaram por ter recentemente alguma dificuldade na captação de capital, portanto houve unicórnios e outras entidades a despedir. Mas a grande diferença entre os despedimentos que existem hoje no mercado digital, comparado com os despedimentos que que havia há uns anos num determinado sector, é que o digital é transversal. Logo, as pessoas que saem de uma certa empresa têm uma capacidade muito grande de entrar noutros sectores. Não consigo dizer se o ciclo se está a inverter, no sentido em que a quantidade de pessoas que trabalham no digital, nas empresas públicas e privadas, é grande e a Administração Pública tem um número muito limitado no contexto geral. Determinar um fluxo desse tipo seria abusivo da minha parte. O que eu posso dizer é que estamos a fazer, com a senhora ministra da Administração Pública, todos os esforços para recrutar. Vão abrir concursos a curto prazo, precisamente, nas áreas que em que se verifica que há mais dificuldade para corresponder aos desafios e a informática é uma delas. Não é por acaso que trabalhámos nessa carreira de informática para tornar mais aliciante, para que no momento preciso – sem que eu queira que esse momento tenha a ver com despedimentos – eu possa recuperar a minha capacidade de intervenção. Essencialmente, que a Administração Pública não fique necessariamente dependente das entidades privadas que fornecem serviços. Vou esclarecer: eu acredito, fundamentalmente, na colaboração público-privada. Não estou a dizer que se deve substituir, porque a capacidade que o privado tem – pela multiplicidade de empresas, especificidade de trabalhar em nicho de mercado, estar a par das tecnologias e acompanhar a inovação tecnológica – não é possível fazer na Administração Pública. Mas é necessário que a Administração Pública entenda, seja capaz de comprar bem e defina o que é necessário. A cocriação de novos serviços passa por perceber as necessidades do cidadão e as capacidades que o digital dá. Só nesta confluência teremos serviços omnicanal, mais rápidos, transparentes e intuitivos.

Por falar em cocriação e confluência. O que estão a fazer os 33 consórcios das test beds? Quantos pilotos fizeram até agora?

Lançámos as test beds há seis meses em Aveiro. Da mesma maneira, o lançamento do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência], Agendas Mobilizadoras ou test beds sofrem daqueles momentos de infância que é: lança-se, mas depois, quando se tem de assinar o contrato, falta este documento ou aquele, “ah não vi esta implicação”. Há ali sempre um momento inicial muito burocrático. Acresce que, no caso das test beds, havia algumas coisas que tivemos de limar, como por exemplo garantir que as test beds pudessem desenvolver produtos até ao que se chama TRL [Technology Readiness Level], o nível de prontidão tecnológica (maturidade) do produto, 5. Ou seja, de trazerem as coisas de laboratório para o ambiente “fabril”, real. Tivemos de voltar à Comissão Europeia, nesta renegociação do PRR, para garantir isso com algumas das test beds que só queriam fazer esse trabalho e a relação contratual limitava-os um bocado. À parte uma dificuldade burocrática, 200 produtos ou serviços já estão a ser feitos e 50 estão terminados. Já há 50 novos serviços ou produtos que saíram de laboratório, foram testados, estão disponíveis e a PME ou a grande empresa que colaborou nessa test bed teve valor acrescentado, porque tinha algo em laboratório que saiu, nas áreas aeroespacial, saúde, economia circular, agricultura, entre outras. Estamos em ramp up. Vou dar um exemplo: uma das test beds, agora liderada pela Horse (Renault Cacia), fez uma espécie de aviso para convocar entidades que tivessem produtos ou serviços para testar e receberam 79 candidaturas. Nem todas foram utilizadas, porque o número de protótipos que tinham era 52. Portanto, só na primeira vez que alargaram o ecossistema, teoricamente, tiveram massa crítica de 79 quando só necessitavam de 50.

Alguns têm de chegar aos 100 pilotos realizados. Se essas metas não forem cumpridas são excluídos?

Até mais. Acho que 136 é o máximo. Sim, é essa a lógica do PRR. Contratualmente, toda a gente sabe. O que não queremos é deixar uma test bed abandonada. Queremos que as test beds comuniquem. Razão pela qual as juntámos todas, a 25 de setembro, virtualmente (da mesma maneira que as Agendas Mobilizadoras se juntaram todas, um ano depois, em Leiria, no Governo Mais Próximo). Daqui a um ano, as test beds juntar-se-ão para vermos quais são as sinergias. Por exemplo, Aveiro tem cinco ou seis ali à volta, e a Visabeira fez inclusivamente visitas ao Instituto Politécnico de Milão para perceber como os mecanismos próprios de lá são implementados para replicarem em Portugal.

Em relação às estratégias nacionais nesta área, entre as smart cities e a revisão da segurança no ciberespaço, qual ficará concluída primeiro?

A primeira que eu tenho expectativa que apareça é a dos territórios inteligentes. Porquê? O PT2030 está a lançar os primeiros avisos – estamos a apoiar os municípios e todas as regiões numa perspetiva digital, para racionalização dos gastos de água, eletricidade, identificação da qualidade do ar e controlo das regas – e depois temos o segundo projeto europeu a apoiar a digitalização dos territórios nesta lógica de smartização. O primeiro projeto, apoiado pela DG Reform, ajudou-nos a construir a base para a estratégia e este segundo vai ajudar-nos a implementá-la. Ao mesmo tempo, no reforço do PRR, temos um capítulo de 60 milhões de euros dedicados aos territórios inteligentes. Repara: com PT2030, PRR e apoio da Comissão Europeia para a implementação, temos as condições necessárias para lançar uma estratégia que tenha sucesso. Verão que vamos participar em eventos nacionais e internacionais na área das smart cities. A seguir, temos três estratégias – IA, dados e Web 3.0, coordenadas pelo professor Arlindo Oliveira e cada uma delas com os seus coordenadores. Os trabalhos estão a correr muito bem. Até ao fim do ano teremos essas três estratégias apresentadas no sentido em que elas se alinham verticalmente com o que está a fazer na Europa.

Até ao final de 2023 haverá quatro estratégias nacionais relacionadas com tecnologia?

Territórios inteligente mais essas três. As três serão resultado destes grupos de trabalho e depois ter-se-á de ver como é que o Conselho de Ministros as calendarizará. Ao lado, estamos a trabalhar na de cibersegurança, que tem a ver com uma transposição de uma diretiva europeia. Aliás, no quadro regulamentar português já tínhamos antecipado algumas coisas. Estas três estratégias – IA, dados e Web 3.0 – cumprem a função de alimentar algo que é a estratégia Portugal Digital 2030, uma «estratégia-chapéu», mais abrangente, que só pode ser desenhada como resultado desta reflexão que incorpora os territórios inteligentes, a cibersegurança, a IA, a Web 3.0 e os dados. Será uma estratégia global que depois é detalhada ao fim de três anos e renovada para se garantir que Portugal pode sempre refletir a ambição e o realismo, ao longo dos anos, daqui até 2030.

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