O regime dos preços de transferência mudou. Os contribuintes portugueses estão agora expostos a níveis “sem precedentes” de transparência, enquanto as autoridades fiscais, cada vez mais atentas, estão a cooperar além-fronteiras. As empresas podem, assim, esperar, alerta Nelson Pereira, associate partner da EY, inspeções bilaterais e mesmo multilaterais. Já João Cunha Guimarães, diretor da mesma consultora, na área de tax services, defende que as novas regras reforçam os meios através dos quais se poderá verificar o cumprimento do princípio da concorrência plena.
Mas vamos por partes. Convém explicar, primeiro, que os preços de transferência são aqueles pelos quais uma empresa transfere bens, direitos ou serviços a outra entidade com a qual esteja numa relação especial, isto é, numa situação em que uma das partes tenha o poder de exercer, direta ou indiretamente, influência significativa nas decisões de gestão da outra. “O regime dos preços de transferência tem como paradigma o princípio da plena concorrência, determinando que os termos e condições estabelecidos nas operações realizadas entre duas ou mais entidades em situação de relação especiais devem devem ser contratados, aceites e praticados como se fossem efetuados entre entidades independentes em operações comparáveis”, precisa Nelson Pereira.
Desta forma, estabelece-se “uma paridade de tratamento fiscal” entre empresas integradas em grupos internacionais e empresas independentes, além de se neutralizar “certas práticas de evasão fiscal”, realça o especialista.
O Governo decidiu rever essa regulamentação, tendo sido introduzidas “novidades importantes”, destaca o associate partner da EY. Na prática, diz, os contribuintes estão agora sujeitos a uma maior exigência, em termos de documentação e comprovação das suas práticas, e expostos a níveis de transparência “sem precedentes”. Mais, a cooperação além-fronteiras das autoridades fiscais sai reforçada e revê-se as regras de celebração de acordos prévios sobre os preços de transferência, o que é relevante tendo em conta o “renovado interesse” nesses entendimentos, sublinha.
Em maior detalhe, no que diz respeito à documentação, foram feitas três grandes mudanças, esclarece Nelson Pereira: primeiro, reviu-se os critérios de dispensa de organização da documentação dos preços de transferência, fixando-se um duplo critério relativo aos rendimentos anuais e ao montante das operações vinculadas dos sujeitos passivos. Em segundo lugar, houve uma reestruturação da documentação ao serem criados dois modelos de documentação distintos: o standard (que inclui o dossier principal e o dossier específico) e o simplificado (para as pequenas e médias empresas). E, por fim, densificaram-se os requisitos de documentação de preços de transferência associados a acordos de partilha de custos e acordos de prestação de serviços intragrupo.
Para o associate partner da EY os novos elementos pedidos, neste âmbito, são “enormemente desafiantes”, sobretudo para os contribuintes que estejam inseridos em grandes grupos económicos, que “não têm sequer acesso” à informação em questão ao nível do acionista. “Questiona-se a razoabilidade da Autoridade Tributária (AT) em exigir, sob pena de aplicação de coimas, ao contribuinte português informações sobre entidades não residentes, que podem até nem ter quaisquer relações comerciais com a entidade portuguesa”, atira.
Também João Cunha Guimarães admite que é questionável a legitimidade do Fisco para pedir informação sobre transações entre entidades não residentes, referindo-se especificamente à coima que pode ser aplicada. Mas alerta que as legislações internacionais já vinham evoluindo “no sentido de introduzir mecanismos que permitam a troca automática de informação entre as diferentes Autoridades Tributárias”. “Esta exigência declarativa, quando analisada em conjunto com a informação disponibilizada no dossier principal, permite à AT portuguesa uma visão global do grupo, nomeadamente das jurisdições onde opera, obtém mais lucros e paga mais impostos, facilitando uma primeira análise de potenciais riscos no que concerne a problemas de evasão fiscal”, reconhece ainda.
O que muda para as empresas mais pequenas?
No caso das micro, pequenas e médias empresas, é exigida agora a apresentação do dossier simplificado, cujo objetivo é assegurar que estes contribuintes “observam o reporte de elementos que permitam aferir o cumprimento do princípio de plena concorrência”, avança Pedro Simões Pereira, diretor da EY, na área de tax services.
Os elementos previstos neste âmbito são, pormenoriza o especialista: a identificação das entidades envolvidas nas operações vinculadas (denominação, país de residência, número de identificação fiscal e natureza da relação especial); a descrição da tipologia, características e valor das operações vinculadas; a identificação dos métodos de preços de transferência utilizados; e os comparáveis obtidos e valores ou intervalos de valores resultantes da aplicação dos métodos referidos na alínea anterior.
Internacionalização e preços de transferência
As novas regras dos preços de transferência levantam também perguntas relativamente à internacionalização das empresas. Afinal, como é que estas devem agir, quando arranca o seu processo de internacionalização? “Este tipo de processo exige um cuidado e detalhado trabalho em diversas áreas, nomeadamente no que toca à temática de preços de transferência”, explica João Cunha Guimarães. Realça que, numa primeira fase, deve ser feita “a delineação detalhada do perfil funcional das empresas, considerando as funções a serem desempenhadas, os riscos a serem assumidos e os ativos a serem empregues, de modo a caracterizar as mesmas funcionalmente e a contextualizar as suas atividades na cadeia de valor do grupo”. Posteriormente, seguem-se outros passos, diz, como o mapeamento dos fluxos transacionais das entidades relacionadas.
Tudo somado, este especialista defende que a legislação agora em vigor permite assegurar que não existe, por exemplo, uma “subsidiação” de filiais portuguesas de grupos multinacionais através de “manipulações” dos seus preços de transferência. As antigas regras já tinham em conta essa realidade, considera, mas agora saem reforçados os meios através dos quais se pode verificar o efetivo cumprimento do princípio de plena concorrência, remata o diretor da EY.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com