E se o seu próximo smartphone for feito não na China, mas no Ruanda? A pergunta pode parecer disparatada, mas, este ano, deixou definitivamente de o ser. Em Outubro, o Mara Group inaugurou na capital ruandesa, Kigali, uma fábrica de smartphones, com objectivos ambiciosos. Com os seus Mara X e Mara Z, equipados com o sistema operativo Android, o grupo pretende rivalizar com os líderes de vendas de smartphones em África – os chineses Transsion e Huawei, além da Samsung e Tecno.
Graças a empresas como a Mara, o Ruanda é hoje o país que mais cresce em África. Aliás, em 2018 registou o ritmo mais acelerado de crescimento económico em todo o mundo – perto de 9%, segundo o relatório Africa’s Pulse, divulgado em outubro pelo Banco Mundial. Este ano, disputa a liderança com Bangladesh, Vietname e com três pares africanos – Etiópia, Costa do Marfim e Burkina Faso.
A impulsionar o crescimento da economia ruandesa, e de outras vizinhas, estão importantes saltos tecnológicos, conforme salienta o relatório Africa’s Pulse – a instalação de painéis solares e redes eléctricas de pequena escala estão a levar “eletricidade barata e renovável” a cidades e comunidades rurais. A carência de vias de comunicação está a ser suprida com recurso a “drones” – que, no caso do Ruanda, já permitem a entrega de bens em zonas remotas.
Embora o crescimento dos países africanos continue a ser frequentemente associado a ciclos de aumento dos preços das matérias-primas, o Ruanda não é grande produtor de petróleo, como Angola ou Nigéria, ou de minerais, como a República Democrática do Congo. É, aliás, mais conhecido por suas colinas. A Etiópia, outro país em rápido crescimento, é árida, tem um longo historial de secas e fome e o seu crescimento rápido explica-se pela muito acelerada industrialização, sobretudo atraindo fabricantes chineses.
Por causa do seu crescimento económico, o resto do continente africano tem vindo a olhar com crescente atenção para o Ruanda. O país tornou-se conhecido como a “Suíça africana”, pela combinação de um interior verdejante com cidades limpas e bem dotadas de serviços públicos – algo raro no contexto africano. Deu-se até ao “luxo”, em 2018, de investir 30 milhões de libras num patrocínio ao multimilionário clube de futebol inglês Arsenal – que ostenta desde então a frase “Visit Rwanda” nas mangas das suas camisolas vermelhas e brancas.
Será então o Ruanda o modelo para o resto do continente? Muitos africanos acreditam que sim. Não apenas pelo crescimento económico, mas também pela evolução de indicadores ao nível da saúde e bem-estar da população. Mas o país governado por Paul Kagame – que completará 20 anos no poder em 2020 – é um regime autoritário. E está longe de ser caso único.
Autoritarismo x crescimento económico
Para Nic Cheeseman, académico britânico da Universidade de Birmingham, exemplos como o do Ruanda e Etiópia – regimes autoritários com elevado crescimento económico são a excepção, não a regra. Estes dois países, disse ao África Capital o autor de alguns dos trabalhos de referência sobre a consolidação das democracias africanas, têm tido sucesso “no uso do modelo autoritário de desenvolvimento na procura de crescimento económico, centralizando o controlo das actividades económicas, atacando a corrupção e investindo em áreas-chave da economia que poderiam não ter atraído investidores privados”. Mas em países com maiores níveis de concorrência política, o resultado do autoritarismo pode ser a violência e a desordem. O caso da Etiópia, onde o novo primeiro-ministro, Abyi Ahmed, chegou ao poder em 2018, na sequência de protestos populares, com uma agenda reformista – que já lhe valeu o Prémio Nobel de 2019 – foi já uma manifestação da viabilidade do modelo autoritário a longo prazo, diz Cheeseman.
Aliás, adianta o académico, dois dos maiores casos de sucesso económico em África, desde a independência, são modelos democráticos – Botsuana e Maurícias. “Em média, as democracias têm melhor desempenho do que Estados autoritários, no que diz respeito a crescimento económico”. No relatório Liberdade no Mundo 2019, da Freedom House, apenas 9 dos 54 países africanos são considerados livres. Nenhum deles é lusófono. Angola, por exemplo, continua a ser considerado um país “não livre”.
O Ruanda é, também para os democratas africanos, um exemplo – do que há de errado com o continente. O partido de Paul Kagame, a Frente Patriótica do Ruanda, controla o país com mão-de-ferro desde 1994, quando emergiu vencedor de um dos mais sangrentos conflitos da história de África. O “think tank” norte-americano Freedom House considera o país “não livre”. A Human Rights Watch (HRW), na sua mais recente avaliação do país, sublinha as “rígidas restrições à liberdade de expressão e ao espaço político” e diz que “jornalistas que ousam questionar a narrativa oficial são assediados ou presos”, nalguns casos em centros de detenção não oficiais. Há relatos de desaparecimentos e tortura.
“Uma atmosfera de medo e silêncio”. É o que descreve ao África Capital o jornalista ruandês Fred Muvunyi. Ex-presidente da Comissão do Ruanda para os Media, teve de fugir do país devido a ameaças e é hoje editor da Deutsche Welle Africa. “As mortes e intimidação contra elementos da oposição e da sociedade civil têm um efeito paralisante sobre a liberdade de expressão. A maioria dos ruandeses opta pelo silêncio, para não ter problemas”.
Estarão os ruandeses dispostos a sacrificar liberdades em troca de emprego e crescimento económico? Fred Muvunyi diz compreender que assim seja, mas rejeita cedências. “Quando se tem fome, quer-se comida. Quando se está de algemas, quer-se liberdade. Mas nenhuma dessas coisas deve privar-nos do direito que temos à outra”.
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