Quais são as competências de um Governo de gestão? E o que pode ser feito sem um Orçamento? Estes têm sido temas amplamente discutido no campo político com Governo e oposição madeirense a terem respostas diferentes para a mesma pergunta, numa altura em que a Região entrou em 2025 sem Orçamento aprovado e com um Governo em gestão, devido à queda do executivo por via da aprovação de uma moção de censura, a 17 de dezembro.
E no caso da Madeira, caso vá a eleições, e se consiga formar Governo, o pior cenário aponta para que não exista Programa de Governo aprovado, não exista um Orçamento aprovado, e se continue com Governo de gestão até julho de 2026.
Para esclarecer o que pode fazer um Governo de gestão, e o que acontece se não existir um Orçamento aprovado, o Económico Madeira contactou vários especialistas na área do direito.
O professor da Universidade Autónoma de Lisboa, Pedro Trovão, referiu que, citando o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, que a competência de um executivo em gestão limita-se “à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos” da Região.
“Só pode praticar atos de gestão corrente, que se verifiquem corresponder ao estritamente necessário, pois não estará na plenitude das suas funções, atendo-se a assegurar a continuidade do funcionamento do executivo regional”, reforça Pedro Trovão do Rosário.
Sobre as competências de um Governo de gestão, o docente da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona, Nuno Magalhães, considera, em resposta ao Económico Madeira, que a resposta “não é linear e depende de cada caso” em concreto, pois a Constituição da República Portuguesa (no caso da Madeira no Estatuto Político-Administrativo) “não enumera específica e taxativamente” os atos que um Governo de gestão pode ou não praticar, fica limitado “á prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos.”
Nuno Magalhães acrescenta que “é entendimento maioritário” na doutrina que um Governo de gestão “pode praticar atos de todo o tipo de poderes públicos, seja político, administrativo, internacional e até legislativo, desde que tais atos se mostrem estritamente necessários para a defesa ou salvaguarda” do interesse público.
“O legislador constitucional não seguiu um critério de importância, ou não, da questão em causa, mas sim da necessidade ou não. Ou seja, desde que inadiáveis e urgentes, independentemente da sua importância, o Governo de gestão pode praticar estes atos, prevalecendo a defesa do interesse público sobre a legitimidade democrática. Esta opção é coerente com o fato de a Constituição da República Portuguesa prever que o Governo continue em funções até à posse do novo Governo, impossibilitando assim e em caso algum, o vazio de poder”, detalha Nuno Magalhães.
Nuno Magalhães acrescenta que a doutrina e a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem considerado que atos estritamente necessários “não se devem confundir” com atos de gestão corrente, podendo aqueles extravasar estes, nem tão pouco com a clássica distinção entre atos de administração ordinária e extraordinária, podendo um Governo de gestão “praticar atos que extravasem a gestão corrente e que sejam de administração extraordinária, desde que se revelem absolutamente necessários” para garantir ou defender o interesse público.
“Por isso, tem-se entendido que a expressão “estritamente” prevista na Constituição reforça o critério da absoluta necessidade da prática do ato que, segundo o Tribunal Constitucional, deve ser “concreta e datada, premente, e cujo adiamento comprometa gravemente o interesse público”. Ou seja, devem ser aplicadas duas sub vertentes à expressão “estritamente necessários” e que são a sua inadiabilidade e a proporcionalidade entre a medida adotada e o problema que aquela medida visa resolver ou evitar. Ou seja, o ato tem de ser necessário, adequado e praticado na justa medida para resolver aquele problema em concreto”, explica Nuno Magalhães.
Nuno Magalhães diz ainda que se tem sugerido que um Governo de gestão “não pode praticar atos inovatórios fundamentais que comprometam a ação do futuro Governo, aferido objetivamente, de uma forma o mais consensual possível e não pelo interesse, ou opinião, de quem pratica o ato, mas, mesmo nestes casos, se necessários e inadiáveis, tem sido aceite a prática destes atos pelos Governos de gestão”.
Nuno Magalhães considera que um Governo de gestão “tendencialmente não poderá obter” autorizações legislativas, apresentar propostas de lei inovatórias, mas pode, desde que estritamente necessárias ao interesse público, “apresentar iniciativas legislativas da sua competência, incluindo de natureza orçamental”.
O professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona diz ainda que esta “abstração na concretização das medidas admissíveis [para um Governo de gestão], que se julga intencional a avaliar” pelo debate do processo de revisão constitucional de 1982 que introduziu este conceito, resulta também do fato de ser o “próprio Governo e em primeira instância a auto interpretar e limitar-se” na definição dos atos admissíveis.
“Posteriormente, só o Presidente da República, recorrendo à fiscalização preventiva da constitucionalidade de atos normativos junto do Tribunal Constitucional ou através do exercício da sua competência de garante do regular funcionamento das instituições, fiscaliza os atos de gestão praticados por um Governo de gestão”, refere Nuno Magalhães.
A Madeira, para além de ter um Governo em gestão, também não tem um Orçamento aprovado para 2025. Tal se deveu à proposta de Orçamento, ter sido rejeitada pelo Parlamento da Região, a 9 de dezembro, com o “não” do PS, Juntos Pelo Povo (JPP), Chega, Iniciativa Liberal (IL), PAN, e o “sim” do PSD e CDS-PP.
Neste cenário que competências tem o Governo?
Relativamente à falta de um Orçamento aprovado, para 2025, Pedro Trovão do Rosário, salienta, tendo em conta a Lei das Finanças das Regiões Autónomas e a Lei nº 151/2015, que o Governo Regional, “só poderá gastar um doze avos (1/12) da despesa constante”, ou duodécimos, do último Orçamento Regional aprovado em cada mês.
“Durante o período em que não exista um novo Orçamento aprovado, dá-se a prorrogação de vigência da lei do Orçamento Regional respeitante ao ano anterior, “a execução mensal dos programas em curso não pode exceder o duodécimo da despesa total da missão de base orgânica, com exceção das despesas referentes a prestações sociais devidas a beneficiários dos sistemas de proteção social, a direitos dos trabalhadores, a aplicações financeiras e encargos da dívida, a despesas associadas à execução de fundos europeus, bem como a despesas destinadas ao pagamento de compromissos já assumidos e autorizados relativos a projetos de investimento não cofinanciados
ou a despesas associadas a outros compromissos assumidos cujo perfil de pagamento não seja compatível com o regime duodecimal”, acrescenta Pedro Trovão do Rosário.
Nuno Magalhães acrescenta que, mesmo sem um Orçamento aprovado, e a viver em duodécimos, um Governo de gestão “tem poderes mais limitados”, sublinhando que, por exemplo, a lei ordinária, “curiosamente não a Constituição”, proíbe certas nomeações num governo de gestão. “É o caso dos cargos de direção superior (artigo 19.º n.º 13 do Estatuto do Pessoal Dirigente), gestor público (artigo 13.º n.º 5 do Estatuto do Gestor Público) e de supervisão (artigo 17.º n.º 7 da respetiva Lei-Quadro)”, adianta Nuno Magalhães.
Com o cenário de eleições antecipadas na Madeira em cima da mesa e com o mandato do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a expirar, levantam-se outras questões no panorama político madeirense.
Numa situação em que o Governo seja formado e não conseguindo aprovar um Programa de Governo, no Parlamento da Madeira, Pedro Trovão do Rosário salienta que o Governo “estará igualmente limitado à prática dos atos estritamente necessários” para assegurar a gestão dos negócios públicos, ou seja, tecnicamente, será um governo de gestão.
Pedro Trovão do Rosário referiu que o Programa de Governo é apresentado à Assembleia da Madeira, no prazo máximo de 30 dias a contar do ato de posse do presidente do Governo Regional, sob a forma de moção de confiança, tendo em conta o estatuto da Região Autónoma da Madeira.
Antes da aprovação do seu Programa pela Assembleia Legislativa Regional, ou após a sua demissão, o Governo Regional limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos da Região”, diz Pedro Trovão do Rosário, citando o estatuto político administrativo da Madeira.
Num cenário em que um Governo tome posse, e não consiga aprovar um Programa de Governo, o Executivo fica em gestão até que este seja aprovado.
Sobre este cenário, Nuno Magalhães salienta que se trataria de “uma substituição de um Governo de gestão por um outro Governo de gestão e até à aprovação do seu programa de Governo”.
E depois há que considerar os períodos de dissolução dos Parlamentos.
Existindo a formação de um Governo, o Parlamento Regional não pode ser dissolvido nos seis primeiros meses. E no caso do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a Constituição define que este não pode dissolver nos seis primeiros meses do mandato e nos seis últimos meses do mandato.
Isto é confirmado por Pedro Trovão do Rosário.
“Por força de remissão da alínea j) do artigo 133.º para o artigo 172.º da Constituição da República Portuguesa, com as necessárias adaptações, estabelece-se que o Presidente não pode dissolver uma Assembleia Legislativa Regional nos seis meses posteriores à eleição desta e no último semestre do mandato presidencial (é um limite temporal)”.
O artigo 172º da Constituição estabelece que A Assembleia da República “não pode ser dissolvida nos seis meses posteriores à sua eleição, no último semestre do mandato do Presidente da República ou durante a vigência do estado de sítio ou do estado de emergência”.
Em termos de calendário, caso a Madeira vá para eleições antecipadas, o mais provável é que o ato eleitoral se realize em março. Existindo um Governo resultante de eleições, o Parlamento Regional não poderia ser dissolvido durante seis meses. Ou seja, até setembro [março a setembro].
E o Presidente da República não pode dissolver o Parlamento da Madeira nos seis últimos meses do seu mandato presidencial e nos primeiros seis meses do seu mandato presidencial.
É esperada que as eleições presidenciais se realizem em janeiro de 2026.
Caso não seja aprovado um Programa de Governo, o executivo da Madeira não entraria em funções, ficando em gestão, e manter-se-ia sem Orçamento aprovado, vigorando um regime de duodécimos.
Levando tudo isso em consideração, o Presidente da República só poderia dissolver Parlamentos até junho de 2026 (perderia esse poder de sair um Governo da Madeira em março), e, caso o novo Presidente da República tome posse em janeiro de 2026, não poderia dissolver o Parlamento até julho de 2026.
Ou seja, a Madeira poderia correr o risco de, no pior cenário, não ter um Programa de Governo e Orçamento aprovado, e também um Governo de gestão, até julho de 2026.
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