João Pedro Matos Fernandes, ministro do Ambiente e da Ação Climática, em entrevista ao Jornal Económico revela que está a preparar o grande projeto industrial da próxima década – a produção de hidrogénio a partir da água do mar -, antecipando que o hidrogénio terá um preço semelhante ao do gás natural. Também anuncia o próximo leilão para projetos de energia fotovoltaica, a 8 de junho, que, pela primeira vez, terão de armazenar eletricidade.
Na produção de energia verde, sustentável, por exemplo, com recurso a painéis solares, o Ministério do Ambiente vai querer dinamizar as comunidades de produtores de energia, com agrupamentos por bairros, ou seja, reunindo vários produtores para criar maior massa crítica. É isso?
No final de 2019 aprovámos um decreto-lei que constituía as comunidades energéticas. Entendo que se fale mais do solar na perspetiva urbana, no conjunto de vários prédios, de um bairro, onde obviamente faz sentido desenvolver projetos com painéis solares. Mas as comunidades energéticas não são necessariamente urbanas, onde o solar é a fonte mais viável. Mas as comunidades energéticas podem funcionar numa zona industrial que tem milhares de coberturas que podem ser transformadas numa boa parte em painéis solares, mas com muita facilidade também associam duas ou três unidades eólicas, ou se estiverem próximas da floresta, também uma central de biomassa. Tudo isso é produção de energia, seja energia elétrica, seja frio ou calor, a partir de fontes renováveis. De igual forma, todo o concurso do lítio é lançado com a expectativa de que cada mina terá a obrigatoriedade de ser ela própria uma comunidade energética que produza eletricidade a baixo custo para quem dela necessitar na sua envolvente.
Os projetos das comunidades de produtores de energia ainda são incipientes. Já há manifestações de interesse?
Esses projetos estão neste momento a ser estruturados. Há autarquias a liderar projetos destes – a Câmara Municipal do Porto é uma delas, vai na dianteira. São projetos de grande relevância porque reduzem muitas emissões, dão mais flexibilidade ao sistema e vão permitir baixar o preço da própria eletricidade consumida.
No atual enquadramento da crise da Covid, a EDP admitiu uma descida nas tarifas da eletricidade. Previsivelmente os preços da gasolina e do gasóleo devem descer bastante. São fatores que poderão desincentivar o arranque dessas comunidades de produtores de energia, porque a as alternativas energéticas são acessíveis. Não acha que estão baratas?
Aqui, de facto, o Estado tem de exercer o seu poder de defesa do bem público. Se nós, desde há dois anos, já estamos a desenvolver uma orientação energética sustentável, em que começámos com o phasing out dos benefícios fiscais que eram atribuídos à produção de eletricidade a partir de combustíveis fósseis – começámos com o carvão e neste último orçamento também com o fuelóleo – é mesmo o momento de acelerar o phasing out porque não faz qualquer sentido. As pessoas, durante muito tempo, falaram e até em sentido pejorativo, sobre aquilo que foram – já não são –, os incentivos atribuídos ao desenvolvimento da produção de eletricidade a partir de fontes renováveis em Portugal. Mas hoje ninguém fala dos quase 500 milhões de euros de incentivos fiscais que estavam associados à produção de eletricidade a partir de combustíveis fósseis. Esse valor tem vindo a ser reduzido. Este é o momento para ser reduzido ainda mais depressa do que estava previsto.
Nesse caso, o incentivo será retirado?
Claro. Já está a ser feito, mas há todas as condições para acelerar o ritmo a que está a ser retirado.
Sobre a energia solar, o Jornal Económico sabe que já tem prontas as datas do próximo leilão…
Sim. É dia 8 de junho. Será lançado o leilão para 700 MW. A pré-qualificação das empresas durará sete semanas. Terão sete semanas para estudarem o processo e se candidatarem. Depois há uma apreciação do lado da administração – não é por se candidatarem que preenchem todos os requisitos – e a licitação será nos dias 24 e 25 de agosto.
Qual é a expectativa que tem para este leilão?
Direi que da outra vez falhámos as expectativas e falhámo-las da melhor das formas. Nunca imaginámos, quando lançámos o anterior leilão que íamos bater o recorde do mundo no preço de produção de eletricidade. Neste momento temos expectativas que são semelhantes às do anterior leilão, sendo que este leilão tem uma variante que é, para além de manter os objetivos que já tinham sido fixados, o modelo de tarifa fixa para a produção ou o modelo de contribuição para o sistema – o concorrente ou quer uma tarifa fixa para vender, ou vende a preço de mercado, comprometendo-se, por cada MW que paga, a contribuir para o sistema – este leilão introduz uma terceira variante, que é a componente da armazenagem. As energias renováveis são, por natureza, intermitentes. O vento e a hídrica nem sempre conseguem ser utilizadas continuamente. É fundamental sermos capazes de aumentarmos a capacidade de armazenagem, que nos dá duas garantias: uma garantia física de disponibilidade de eletricidade, que é fundamental, e uma garantia de preço.
Como remunera o armazenamento?
O que será remunerado na componente de armazenagem é um pagamento por capacidade. Para as outras modalidades anteriores é apresentada a oferta de quem quer produzir 1MW a um determinado preço. Aqui, não. Aqui o candidato está disponível para armazenar 1MW, comprometendo-se, se for necessário, a vendê-lo a um determinado preço. É uma garantia numa dupla perspetiva: primeiro a existência de eletricidade armazenada para o caso de falha no sistema; mas, sobretudo, é a certeza de que quando o valor da eletricidade ultrapassar o valor do compromisso que quem ganhar o leilão estabelecer com o Estado, temos aqui uma espécie de seguro financeiro a favor dos consumidores. Os comercializadores vão buscar ali ao armazenamento. Não há nenhuma necessidade de comprar mais caro.
Como se armazena a eletricidade?
Pode ser feito em baterias. Também pode ser feito a hidrogénio e nós somos completamente neutros do ponto de vista das opções tecnológicas.
A propósito do hidrogénio, terá pronto o projeto desta fonte de energia para Sines?
Sim. Antes de mais, o projeto do hidrogénio é um projeto nacional que ainda antes de se chamar de hidrogénio, se chama de gases renováveis, sendo que o mais importante é certamente o do hidrogénio. Queremos lançar antes do Verão um concurso, com verbas comunitárias, de aproximadamente 40 milhões de euros, para a produção de gases renováveis, onde vão aparecer projetos de produção de hidrogénio – não tenho a mais pequena dúvida – mas onde também vão certamente aparecer projetos de produção de biometano, nomeadamente através do aproveitamento do biometano que está nos resíduos. Há sectores – e a indústria é um deles – que têm sempre uma maior dificuldade na transição tecnológica em prol da descarbonização. Dito de uma forma mais fácil de perceber, nem tudo pode ser eletrificado. A indústria continua a precisar de gases. Portanto, é preciso que os gases sejam renováveis. Esta é a estratégia. Nós temos um grande projeto industrial pensado, desenhado e até estruturado pelas maiores empresas portuguesas do sector, um grande projeto industrial para a produção de hidrogénio a partir da água do mar, em Sines. Em primeiro lugar, porque Sines já é um polo da energia e existem aí terrenos disponíveis do Estado na plataforma logística de Sines que podem ser relevantes para a concretização deste projeto. E em segundo lugar porque em Sines há um porto de águas profundas que pela sua tradição é um porto de energia – agora também é um porto de contentores. Este porto de energia vai perder cargas, como o carvão e, portanto, tem aqui uma capacidade de reconversão para a exportação. Agora, queremos de facto iniciar a produção de hidrogénio industrial em 2023 e este é em primeiro lugar um projeto para ser vendido em Portugal numa primeira fase.
Numa primeira fase?
Sim. Temos a sorte de termos uma infraestrutura de gasodutos novos, ao contrário de países como a Holanda. Em cerca de 60% a 70% dos gasodutos que hoje transportam gás natural, podem ser substituídos por hidrogénio e todo o nosso sistema já está preparado para que no muito curto prazo, desde que haja hidrogénio, 10% do gás que vai no gasoduto poderá ser hidrogénio. Um blend entre gás natural e hidrogénio.
Não cria problemas de segurança?
Rigorosamente nenhuns. Até 10%, quem tem fogões a gás em casa não nota a diferença. Isso é obviamente muito bom, porque reduz os custos – nós não produzimos gás natural – e é bom para a balança comercial e é muito bom do ponto de vista da sustentabilidade porque estamos a utilizar gases renováveis, desde que haja produção nacional de hidrogénio.
Para um projeto dessa dimensão são necessárias unidades de produção de hidrogénio de grande dimensão?
Sim. Queremos estar a produzir 1GW até 2030. Por isso temos as grandes empresas portuguesas do sector alinhadas neste projeto, que tem uma componente inovadora grande que é a de fazer a eletrólise a partir da água do mar e que será certamente o grande projeto industrial da próxima década em Portugal.
A localização da central termoelétrica da EDP em Sines é privilegiada para esse fim?
Os terrenos do Estado de que eu falei são pensados sobretudo para a produção de eletricidade a partir do solar. Depois, os industriais que estão envolvidos no projeto entender-se-ão sobre a localização do eletrolizador. Portugal tem aqui uma vantagem competitiva tão grande: o hidrogénio vem da água, que nunca é cara, sobretudo a água do mar, que ainda é menos cara. O que encarece o negócio da água é sempre a energia. Da fatura da água que pagamos em casa, não é o custo da matéria prima, nem o custo dos reagentes, mas é o custo da energia para tratar a água, para poder bombeá-la para os reservatórios e por aí fora. Aqui passa-se exatamente a mesma coisa. O que é caro na produção do hidrogénio a partir da água, é a energia. Com os resultados do leilão que lançámos há cerca de um ano, provamos que conseguimos produzir eletricidade a um preço que foi recorde do mundo, de 14,66 euros por MWhora. E Portugal tem condições para produzir hidrogénio – para ser mais rigoroso, para extrair o hidrogénio da água – a preços que no norte da Europa são impensáveis. Lá é muito mais caro.
Será sempre uma tecnologia nova e haverá sempre uma fase de teste. A que preço será comercializável o hidrogénio?
Não haja a mais pequena dúvida que o preço do carbono desempenha aqui um papel. Neste momento, produzir eletricidade numa central termoelétrica a partir do carvão é muito mais caro do que produzir a gás, porque começámos a desmamar o benefício que havia de ISP e, portanto, o preço do carbono tem aqui um papel. Há uma coisa que nós sabemos: é que queremos entregar o hidrogénio ao preço em tudo comparável ao que está hoje o gás natural. E isso não estará desligado de uma política de carbon pricing que fará com que os combustíveis de origem fóssil não tenham preços competitivos.
A maioria dos consumidores nunca terá imaginado a possibilidade de utilizar hidrogénio nos fogões que têm em casa para cozinhar. Pelos vistos, isso vai ser uma realidade a médio prazo…
Não será a 100% e terá de haver substituição de equipamentos. Não estamos a enganar ninguém. Numa primeira fase, destina-se a consumidores industriais. Mas o hidrogénio também é fundamental nos transportes. Um camião pode funcionar com baterias a lítio, mas estamos a falar de um peso de baterias que ultrapassa a tonelada. O hidrogénio também está presente nos automóveis ligeiros, mas aí as baterias a lítio têm uma vantagem muito grande. Quando falamos de um camião para longos trajetos, as baterias que podem suportar grandes autonomias terão um peso tão elevado que passam elas a ser o principal fator de consumo de energia. No limite, é quase um paradoxo.
Artigo publicado na edição nº 2039, de 30 abril de 2020 do Jornal Económico
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