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Quantos ‘entretainers’ cabem na Casa Branca?

A tentação da transferência da área do espetáculo para a política sem abandonar os palcos vai-se repetindo em diversas geografias do ocidente. Kayne West é a mais recente tentativa – parece que mal calculada – num segmento onde as grandes referências são Donald Trump e Silvio Berlusconi.
7 Julho 2020, 18h25

A pergunta é pertinente: porque é que o músico norte-americano Kanye West vai concorrer à presidência da maior economia do mundo? A resposta é ainda mais pertinente: porque pode! E pode porque, dizem os analistas, as democracias ocidentais insuflaram até ao limite o lado do espetáculo que está escondido, mas não muito, na política.

No caso norte-americano, país onde quase tudo é ou pode ser um espetáculo – com direito à venda de direitos televisivos e a venda de espaços publicitários – a política não podia fugir à regra. E se o ex-presidente norte-americano Donald Reagan era um antigo ator de Holywood, verdadeiramente não foi ele quem deu início àquilo que alguns analistas chamam o espetáculo da política e outros apelidam de palhaçada. De facto Reagan surge mais como um ator mais ou menos falhado que decidiu optar por uma profissão mais fácil, que propriamente alguém que resolve colocar os dotes pessoais ao serviço da Casa Branca.

Foi mesmo Donald Trump quem inaugurou esta forma um pouco bizarra de estar na política. O magnata do jogo, do imobiliário e da fiscalidade criativa não veio acrescentar nada ao espetáculo com que, tanto republicanos como democratas, envolvem há anos os seus comícios, visitas eleitorais ou encontros com apoiantes. Mas Trump transportou esse espetáculo para outra dimensão: vindo diretamente de um programa televisivo onde se divertia a despedir pessoas que considerava serem intelectualmente limitadas quando comparadas consigo (isto é, todos), estava, em cada comício no lugar certo.

Ao longo da campanha eleitoral, Trump demonstrou ser o ‘entretainer’ certo para todas as organizações de campanha, não só enquanto elemento essencial para fazer todos os presentes passarem um bom bocado, como desenvolvendo uma capacidade assassina (do ponto de vista político) de infligir danos irreparáveis aos adversários com apenas uma frase suficientemente ambígua para não ter de ser necessariamente verdadeira e capaz de se transformar num ‘soundbite’ televisivo.

Certamente que Donald Trump, pioneiro nos Estados Unidos – apesar de John F. Kennedy também ter ‘skills’ muito interessantes nestas áreas, para além de ser na altura um rapaz ‘jeitoso’, o que está longe de ser despiciendo – não foi o primeiro a juntar o inútil ao desagradável, mudando diametralmente a forma de se fazer política no ocidente. Talvez esse lugar pioneiro venha um dia a ser oficialmente atribuído ao italiano Silvio Berlusconi, que em vez de ter um programa televisivo tinha nas mãos a cadeia televisiva propriamente dita, o que é sempre uma ajuda.

Anos mais tarde, o também italiano Beppe Grilo também faria uma migração do entretenimento para a política mas sem abandonar o palco, o que pode demonstrar que o povo italiano gosta – senão não repetia.

Ainda mais recentemente, foi a vez da Ucrânia entrar no sistema, depois de os ucranianos terem feito eleger um ‘entretainer’, Volodymyr Zelenski, para a presidência, em detrimento de Petro Poroshenko – apesar de este ostentar a categoria de figura mítica (mas não muito) da revolução laranja ocorrida naquele país uns anos antes.

 

O rei da Pop, salvo erro

Mas a tentativa de Kanye West parece não estar a surtir os efeitos desejados. Desde logo porque o cantor parece levar uma vida intelectual muito atarefada, sempre na tentativa de encontrar mais uma forma de manter-se na ‘crista da onda’ – utilizando para isso os mais diversos instrumentos, onde coabitam, ao que dizem, a sua vida sentimental, a forma de vestir, a música que produz, os carros que conduz, as casas que habita e por aí adiante.

É que, segundo revelam hoje os meios de comunicação social, dois dias depois do anúncio da sua candidatura à Casa Branca, que já era há muito esperada, as vendas dos temas do músico registaram uma queda abrupta: o novo single, ‘Wash Us in the Blood’, passou da segunda posição para a 27ª no iTunes, e no Spotify a música registou nove milhões de streams, número que representa muito pouco quando traduzido em vendas reais. E o apoio de Elon Musk, fundador da Tesla e da SpaceX, parece ser observado como mais uma bizarria anti-mainstream do empresário, que propriamente uma vontade de o ver sentado na sala oval a fazer gestos esquisitos com os dedos das mãos.

Num quadro em que cada exemplo de transferência entre o espetáculo e a política serve de jurisprudência muito mais que de matéria para fixar tendências ou fundamentar teoria política, os norte-americanos – como afinal todo o ocidente – parecem assim, com o exemplo de West, manter uma postura muito criteriosa sobre a personalidade dos homens e mulheres que entendemos deixarmos que nos tratem por parvos.

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