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Sem passado não há futuro, sem História não há cidadania

Portugal desinveste na disciplina de História há mais de duas décadas. Falta tempo para se desenvolverem metodologias adequadas e pôr os alunos a pensar de forma crítica. A democracia corre sérios riscos.
8 Março 2019, 00h10

Sendo a História uma disciplina estruturante para o pensamento e um pilar da cidadania, é fundamental que haja pessoas a pensar nestas matérias. Miguel Monteiro de Barros dá o seu contributo para essa reflexão no âmbito da Associação de Professores de História a que preside.

Nos últimos cinco anos, a nota dos exames nacionais de História foi três vezes negativa. Que leitura faz destes resultados?

Esses resultados explicam-se a montante. São o reflexo direto da progressiva desvalorização que a disciplina tem vindo a sofrer desde os anos 90 do século passado. Apesar de a tutela ter sempre negado que exista uma política de desvalorização do ensino aprendizagem da História, é isso que se tem verificado ao longo das últimas décadas.

No que se traduz esse desinvestimento?

Na redução paulatina dos tempos letivos atribuídos à disciplina ou na tentativa de união, há alguns anos a esta parte, das disciplinas de História e Geografia, evitada pela ação conjunta das Associações de Professores de História e de Geografia.

Que futuro se perspetiva para a disciplina?

Presentemente, parece-nos haver sinais contraditórios quanto ao futuro da disciplina. Por um lado, congratulamo-nos com o “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória”, onde se refere que as humanidades, nas quais a História ocupa uma posição de destaque pelas valências que apresenta, constituem o cimento que fixa todos os conhecimentos, ligando educação, cultura e ciência, saber e saber fazer num perfil de base humanista. Congratulamo-nos também com a definição das “Aprendizagens Essenciais”, que libertaram espaço nas salas de aula para se poderem desenvolver estratégias mais adequadas ao desenvolvimento do pensamento crítico. Por outro lado, ao atribuir-se ampla autonomia às escolas para distribuírem os tempos letivos pelas disciplinas, é confiar demasiado no seu bom discernimento. E, infelizmente, o que temíamos que poderia vir a acontecer aos tempos letivos da disciplina com a aplicação da flexibilização curricular, parece estar a acontecer.

Como apuraram isso?

Estamos a recolher, junto dos professores de História, informações sobre a distribuição dos tempos letivos antes e depois da flexibilização, e o que nos chegou até agora não augura nada de bom para o futuro da disciplina. Um grande número de escolas, cujos responsáveis parecem sofrer de uma enorme falta de visão a médio e longo prazo, estão a cortar tempos letivos às disciplinas de História, isto apesar de a tutela nos ter garantido, desde o início do processo, que tal não aconteceria.

Decisões estratégicas não podem ficar exclusivamente nas mãos das escolas?

Consideramos que a tutela deve estabelecer tempos mínimos obrigatórios para as disciplinas de História, reivindicação que consta de uma petição que a APH disponibiliza online, na sua página institucional. Aí reafirmamos que a distribuição da carga horária semanal da disciplina de HGP não pode nunca ser, nestas circunstâncias, inferior a seis tempos e a carga semanal da disciplina de História do 3º ciclo não deve ser inferior a nove tempos. Só desta forma conseguiremos travar a falta de consciência histórica que os nossos jovens revelam. Só com mais tempo para analisar e refletir é que os jovens conseguirão adquirir as competências necessárias, não só para obterem melhores resultados nas provas de História que realizarem mas, principalmente, para se tornarem melhores cidadãos, mais ativos e capazes de formar juízos críticos fundamentados.

Para o professor, quais são hoje os desafios e as dificuldades de ensinar História? É possível desenvolver o pensamento crítico sem o conhecimento que é dado pela História?

Considero que o principal desafio do ensino aprendizagem da História é o facto de fazer História ser uma tarefa contraintuitiva. Para entender o passado, temos que nos livrar das ideias de senso comum que fomos adquirindo ao longo da nossa vida, incluindo na escola. Estas, se não forem abandonadas, tornam a compreensão do passado uma tarefa impossível, porque tendem a sobrepor-se a qualquer análise crítica que tentemos efetuar. É esta caraterística do fazer História que torna a disciplina estruturante e só o estudo da História obedecendo a estas premissas consegue desenvolver o pensamento crítico dos jovens de forma equilibrada.

Gostar de História é gostar de viajar no tempo. Falta capacidade de abstração aos jovens? As metodologias são obsoletas?

Sem dúvida. Aos jovens não falta capacidade de abstração. O que falta é tempo para se poderem desenvolver metodologias adequadas. E, com a redução dos tempos letivos que se adivinha, o ensino aprendizagem da História sai, mais uma vez, prejudicado. Aquilo que a tutela nos garantiu que aconteceria – que a disciplina não perderia tempos letivos com as “Aprendizagens Essenciais” e que, pelo contrário, ganharia espaço para metodologias que desenvolvessem nos jovens as capacidades críticas – está a revelar-se uma falácia.

Como se podem tornar as aulas mais atrativas e dinâmicas?

As aulas de História, dispondo de tempo suficiente para desenvolver metodologias adequadas, como a multiperspetiva, são aliciantes e dinâmicas. Sublinho que, com a redução dos tempos letivos e existindo provas nacionais de avaliação, os professores defendem os alunos, sacrificando as metodologias ativas e que desenvolvem o pensamento crítico por outras, mais tradicionais, em que se debitam conteúdos sem os analisar criticamente.

Pode dar-nos cinco razões pelas quais é importante estudar História.

O estudo da História combate as ideias de senso comum; desenvolve a capacidade de análise; desenvolve a capacidade crítica; permite estabelecer comparações entre realidades distintas no espaço e no tempo; potencia o exercício de uma cidadania ativa.

O próximo governo deverá redefinir as prioridades que estão centradas nas ciências exatas e tecnologias?

Sem dúvida, este modelo está esgotado, como aliás o reconhece o “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória”, onde se pode ler: “Um perfil de base humanista significa a consideração de uma sociedade centrada na pessoa e na dignidade humana como valores fundamentais”.

Como se educa para a cidadania sem conhecimento da História?

Não é possível fazê-lo. Todos nós procuramos entender como se formaram as diversas identidades que compõem a nossa identidade: ocidental, europeia, nacional, regional, local, familiar, individual… e tal não é possível sem conhecimento histórico que se adquire, como já vimos, de forma contraintuitiva. A História é, de todas as disciplinas, a mais bem posicionada para desenvolver o espírito crítico, a tolerância e os instrumentos necessários ao exercício de uma cidadania ativa e consciente. As lições do passado são e serão sempre, indispensáveis para a definição das nossas identidades coletivas e para colocarem em perspetiva o tempo presente, permitindo questionar as opções tomadas pelos nossos políticos, pelos nossos chefes, pelos nossos pares e por nós próprios.

Pode exemplificar?

Sobre as lições da História e da importância do seu ensino, relembremos a frase inscrita em Auschwitz, a propósito do Holocausto: “Aqueles que não recordam o passado estão condenados a repeti-lo”. Esta capacidade única que a História possui de pôr os jovens a analisar factos e processos históricos de forma comparativa e crítica é, mais do que nunca, essencial, nomeadamente para desmascarar as mentiras que alastram pelas redes sociais e que colocam em perigo os sistemas democráticos. Infelizmente, esta capacidade parece assustar os poderes políticos que tentam, e não só em regimes autoritários ou totalitários, manipular o ensino aprendizagem da História, de forma a torná-lo mais consonante com os seus objetivos.

Em que medida um pensamento crítico fraco e uma cidadania frágil comprometem o desenvolvimento do país?

Um pensamento crítico frágil é um pensamento crítico cristalizado, que não se questiona, que não conseguiu criar os mecanismos necessários para escapar à ditadura do senso comum, à “intuição”. Conduz à intolerância e à aceitação de verdades absolutas, inquestionáveis, abrindo a porta, por exemplo, aos populismos.

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