Stefan Zweig escreveu sobre a “Europa do espírito” que se reconhecia a si própria nas suas diferenças; a nossa, hoje, reconhece-se sobretudo nas suas fraturas. A frase de Robert Fico — “nunca serei um primeiro-ministro em tempo de guerra” — não é apenas um gesto doméstico para a Eslováquia; é a epígrafe de uma metade do continente que já não vê na derrota da Rússia um objetivo, mas na paragem da guerra um fim em si mesmo. Fico fê-lo na televisão pública, repetindo que não puxará o seu país para “qualquer aventura militar”, e que a prioridade é “acabar a guerra rapidamente”. É política — e é sintoma.
Há pouco mais de duas semanas, a vitória de Andrej Babiš na Chéquia consolidou o outro pilar deste novo eixo centro-europeu. Babiš venceu e abriu conversações para formar governo, enquanto o Presidente Petr Pavel instou-o a manter o programa checo de munições para a Ucrânia — uma fricção que antecipa o choque entre a prudência estratégica do Presidente e a pulsão política do novo vencedor. Mesmo que Babiš se diga “pragmático” e pró-UE/NATO, a sua campanha foi marcada pela crítica ao apoio militar a Kyiv; e, para governar, terá de negociar com forças mais cépticas em relação à Ucrânia. É a Chéquia a reencontrar o centro da História — e a Europa a medir o preço da sua própria divisão.
A guerra, entretanto, está “congelada”? Tecnicamente, não: há ataques aéreos massivos, drones que redesenham a letalidade e avanços pontuais russos; mas a linha de contacto move-se pouco e a maioria dos setores permanece estática, com a Rússia a “grignoter” lentamente território desde 2024/25. A fórmula que melhor descreve 2025 é estagnação dinâmica: mobilidade tática, imobilidade estratégica. O que vale politicamente por “congelamento” — um conflito que não acaba, não decide e vai corroendo vontades.
É aqui que se abrem, com crueza, as duas Europas.
Uma — do Báltico a Varsóvia — vive a guerra no nervo. Sente a ameaça russa como possibilidade física e traduz a segurança em dissuasão, defesa aérea e indústria militar: é o medo transformado em doutrina. Outra — do Atlântico ao Mediterrâneo — observa o conflito com distância, mas com convicção moral: apoia a Ucrânia como dever europeu, disposta a gastar o necessário para o provar, mesmo sem sentir o perigo à porta. Entre ambas, uma Europa intermédia — de Praga a Budapeste — encosta-se à fronteira energética russa, equilibra dependências e testa uma ceasefire politics: “acabar a guerra depressa”, não “derrotar a Rússia”. Fico di-lo sem rodeios; Babiš dá-lhe massa crítica; Orbán dá-lhe linguagem.
Se o projeto europeu é uma gramática comum, a sintaxe da segurança escreve-se hoje em dialetos — e cada um revela, mais do que uma estratégia, um medo diferente.
Enquanto isso, outros ocuparam a mesa da mediação. Erdogan manteve canais abertos a Moscovo e Kyiv e repete que quer uma paz “com todas as partes sentadas”; Donald Trump fez da diplomacia “high-wire” um palco — de Anchorage às conversas sobre Tomahawks e controlo nuclear — tentando um “grande acordo” que, para muitos europeus, ameaça decidir-se por cima das nossas cabeças. Goste-se ou não, quem fala com Putin ganha alavanca; quem recusa falar autoexclui-se. E é isso que a Europa tem feito, em nome de uma razão moral impecável — mas politicamente insuficiente.
O paradoxo é simples: a Europa tem razão ao afirmar que as fronteiras não são negociáveis sob coação e que a Ucrânia merece defesa, soberania e futuro; e a Europa erra quando confunde a razão com estratégia. A estratégia pede dois trilhos, simultâneos e credíveis: capacidade material para que Kyiv não perca, i.e., munição, defesa aérea, produção europeia, resiliência energética; e Arquitetura diplomática para que Moscovo não consiga ganhar senão parando – isto é, uma via de pressão + saída, com enviados europeus aceitáveis para ambos os lados, mandatos graduais e incentivos/penalizações claras. Sem isto, a “paz” fica cativa de terceiros e a guerra, quando parar, parará contra nós.
Há quem responda que não se negocia com quem bombardeia. Compreende-se. Mas negocia-se sempre com inimigos, não com amigos; com estes fazem-se cimeiras. A questão é quem define os termos. Se for Washington-Moscovo (ou Ancara-Moscovo), a Europa pagará a fatura duas vezes: no orçamento e na segurança, com fronteiras frágeis e um precedente devastador. Uma Europa adulta precisa de um Pivot Europeu para a Paz – não para premiar agressões, mas para ordenar um processo em que o custo de continuar seja maior do que o custo de parar.
Isto exige três decisões difíceis.
Primeira: não ostracizar Praga, Bratislava e Budapeste; integrá-las num consenso mínimo (defesa do espaço europeu, continuidade de assistência defensiva a Kyiv, linhas vermelhas explícitas) e dar-lhes lugar na arquitetura diplomática – sem “veto moral”, mas com vigilância estratégica. Segunda: institucionalizar a indústria de defesa europeia — contratos plurianuais, compras em consórcio, especialização por clusters — para que a capacidade militar não dependa do ciclo político americano. Terceira: nomear dois enviados especiais (Friedrich Merz e Giorgia Meloni), com mandato do Conselho Europeu, para abrir canais a Moscovo e Kyiv — com calendário, etapas e condição explícita de que nada está acordado até tudo estar acordado.
O risco, se nada fizermos, é duplo. Interno, porque a metade “pacifista” da Europa, somada ao cansaço social, arrasará o consenso pró-Ucrânia nas urnas — veja-se a Chéquia de Babiš, a Eslováquia de Fico, a Hungria de Orbán e o que pode acontecer em França, Alemanha ou Países Baixos. Externo, porque um cessar-fogo definido por outros congela-nos num entre-guerra: sem garantias de segurança, sem reconstrução financiável e com a Rússia a comprar tempo para a próxima iteração. A “paz dos outros” raramente é a nossa.
Voltemos a Zweig: quando a Europa deixou de se pensar como sujeito, tornou-se objeto da história alheia. Hoje, duas Europas olham a mesma guerra e veem coisas diferentes. É legítimo. Insustentável é não convergir para um denominador comum: defender a Ucrânia para que não seja derrotada; negociar a paz para que o continente não se desfaça politicamente; liderar para que o resultado não seja ditado por terceiros. Pivots existem para aguentar estruturas; o nosso, por enquanto, falta-se a si próprio. E não haverá armistício honroso para uma Europa que não aprenda – depressa – a ocupar o centro do seu próprio tabuleiro.



