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Catarina de Albuquerque: “Os governos não são perfeitos, mas temos de apoiá-los”

Catarina de Albuquerque é a nova presidente executiva da SWA, uma parceria da ONU. Embora critique a falta de articulação dos governos na área do desenvolvimento, vê nas dificuldades desafios a superar para prosseguir a luta que sempre a moveu: defender os direitos humanos e diminuir as desigualdades.
11 Agosto 2018, 15h00

O ritmo a que fala não denota apenas um traço de personalidade, mas também a energia que a caracteriza, a somar ao entusiasmo com que discorre sobre aquilo que mais gosta de fazer: defender os direitos humanos e diminuir as desigualdades.

A partir de 3 de setembro, Catarina de Albuquerque, 48 anos, será a primeira presidente executiva da Sanitation and Water for All [Saneamento e Água para Todos], o cargo mais elevado ocupado por um português na UNICEF.

Após um extenso processo de seleção, no qual participaram 199 candidatos, a escolha recaiu sobre aquela que foi a primeira relatora Especial da ONU para a defesa do direito à água potável e ao saneamento, e diretora executiva da Sanitation and Water for All (SWA) nos últimos três anos, decisão a que não serão alheios o sucesso e reconhecimento que obteve no desempenho dessas funções. Mas, afinal, quem é Catarina de Albuquerque?

Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Mestre em Direito Internacional pelo Institut Universitaire de Hautes Études Internationales, na Suíça, e Doutora Honoris Causa pela Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, Catarina de Albuquerque é um nome que a maioria dos portugueses desconhece, embora seja uma figura reconhecida no mundo diplomático na área da defesa dos Direitos Humanos – cadeira que leciona na Católica Global School of Law. Em 2009, foi homenageada pela Assembleia da República com o Prémio Direitos Humanos pelo trabalho desenvolvido nesta área, embora nos últimos anos se tenha dedicado mais ao setor dos recursos hídricos.

Quisemos recuar no tempo para perceber se se recordava do momento em que percebeu que era este o caminho que queria seguir. “Acho que sempre tive uma veia reivindicativa e de luta por direitos, ainda que na altura não soubesse o que são direitos. Insurgia-me contra aquilo que achava injusto ou que estava errado. Sempre tive isso. Mas lembro-me de, aí com 19 anos, ter começado a fazer voluntariado num bairro de lata que havia ao pé do estádio universitário em Lisboa, a Quinta da Calçada. Eu andava na Clássica, mas como tinha amigos do Grupo de Ação Social da Universidade Católica, juntei-me a eles. Ajudava os miúdos a fazer os trabalhos de casa e, no verão, participei no campo de férias. Havia miúdos que nunca tinham ido à praia! No regresso a casa, dei por mim com lágrimas nos olhos a pensar: ‘é isto que me faz feliz’. Lembro-me perfeitamente.”

As boas intenções não bastam

Aqui chegados, importa perceber o que é e o que faz a SWA. “É uma parceria. Depois da aprovação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, em 2000, foram criadas diversas parcerias sob a égide das Nações Unidas na área do desenvolvimento. Porquê? Porque se chegou à conclusão – e já se devia ter chegado a essa conclusão antes – que os Governos, hoje em dia, não são o que eram em 1945, quando foram criadas as Nações Unidas (ONU). Aquela estrutura da ONU que vê os governos como o ator principal, secundário e por aí fora, não funciona para o mundo em que vivemos, em que temos a sociedade civil a assumir um papel cada vez mais relevante na área do desenvolvimento, tal como o setor privado, as instituições de investigação, a academia, os doadores bilaterais e multilaterais, os bancos de desenvolvimento, as fundações privadas… E então chegou-se à conclusão de que, ou se reformavam as Nações Unidas, o que é bastante complicado, ou, para tentar agilizar as coisas, criava-se este tipo de parcerias que dão direitos iguais a todos estes atores. E foi isso que começou a acontecer. Foram criadas parcerias deste género na área da educação, na área da nutrição e outras mais específicas, como a violência contra crianças, a saúde materno-infantil, o combate à tuberculose e também a nossa, a SWA.”

Hoje em dia, há 100 países envolvidos na SWA, Portugal incluído. Prioridade? Pô-los a funcionar em conjunto. A par dos Estados, também é necessário trazer para a mesa as empresas privadas, os bancos de desenvolvimento, as fundações e a sociedade civil, bem como instituições académicas de referência e parceiros estratégicos como o Banco Mundial. E, acima de tudo, articular as iniciativas que se pretende levar a cabo na área do desenvolvimento para evitar que os meios financeiros existentes, muitas vezes insuficientes, sejam mal aplicados.

“O que nós víamos, e que infelizmente ainda se vê hoje em dia, é que há uma desarticulação completa a nível nacional dos esforços levados a cabo numa determinada área do desenvolvimento. Não só tem havido falta de dinheiro, como tem sido muito mal gasto. Dou-lhe um exemplo. No arquipélago de Quiribati, no Pacífico, que também é membro da ONU, numa das ilhas, vi um edifício com uma arquitetura peculiar e perguntei o que era. Uma central de dessalinização, disseram, construída com donativos. Mas como não têm dinheiro para pagar a eletricidade, a central não funciona. Ou seja, doações ad-hoc é algo que não funciona! Outro exemplo. Estamos a passar férias numa aldeia que não tem sequer uma escola. Arranjamos dinheiro e até construímos a escola, mobilamos, pomos tudo a funcionar. Depois a escola não é reconhecida pelo Ministério da Educação do país em causa, não há professores, não há manuais… Em vez de estarmos a gastar dinheiro na construção da escola, não faria mais sentido informarmo-nos junto do Governo e perguntarmos se há uma escola num raio de dez quilómetros? Ficamos a saber que há e que até cobre as crianças dessa aldeia. Então, mais valia comprar um autocarro para transportar as crianças, pagar a um motorista para fazer esse serviço e pagar a gasolina, por exemplo, tal como apoiar a aquisição de manuais escolares… Enfim, o que quero dizer é que, embora os governos não sejam perfeitos, nós temos que apoiar os governos, os países, que já têm planos ou estratégias nas mais diferentes áreas, e perceber como a nossa ajuda pode reforçar essas estratégias. Se não existirem, então vamos começar pelo princípio, pelos alicerces, e não pelo telhado. Ou seja, vamos apoiar a elaboração de uma estratégia para a área da água [abastecimento], da educação, o que for, perceber quais são as prioridades, onde se vai intervir e quais são os problemas, para depois toda a gente alinhar os esforços. Mas isto é muito difícil!”

Vontade política precisa-se

A questão da vontade política surge, inevitavelmente, durante a entrevista, a propósito de uma declaração de Catarina de Albuquerque – com mais financiamento e melhor uso do dinheiro, poderemos chegar a 2030 e garantir que não há ninguém à face da Terra sem acesso a água e saneamento de qualidade. Quisemos saber se é exequível. “Em teoria é, na prática, não sei. É humanamente possível? É tecnicamente possível? Sim, é possível. Se isso não acontecer, há uma razão: falta de vontade política. Se não houver vontade política, nada se faz. O que se está a fazer na Índia é exemplo disso. O primeiro-ministro Modi, com todos os defeitos que possa ter, elegeu o saneamento como prioridade – o programa Clean India Mission. E tem conseguido progressos extraordinários por uma única razão, porque há um drive político para alcançar essa meta. Porque é que em Portugal não há mais bebedouros para os sem-abrigo? Porque é que não há mais casas de banho públicas? Não é por falta de dinheiro, é por falta de vontade política!”

Ir ao terreno sempre fez parte do seu dia a dia. Por várias razões, entre elas o facto de poder recolher material para contar histórias concretas em vez de debitar exemplos abstratos. Faz toda a diferença quando a batalha tem um rosto e não se fica por estatísticas em papel ou Power Point. Uma prática que pretende manter agora que vai assumir o comando da SWA. “Resolvi introduzir uma nova prática na SWA que antes não existia: as visitas aos países, ao terreno. Isto porque o objetivo da SWA era criar vontade política ao mais alto nível, e então organizávamos reuniões que envolviam os ministros do setor e os ministros das Finanças. Os ministros do setor já estavam convencidos, mas era preciso que os ministros das Finanças autorizassem as dotações orçamentais e percebessem a importância das ações a realizar. Ora, na preparação [das estratégias] aumentava a vontade política e a visibilidade a nível nacional, mas depois das reuniões isso esmorecia. O que agora estamos a fazer é trabalhar com os governos e outros atores a nível nacional, e parte deste trabalho passa por visitas aos países.”

E como funcionam essas visitas? Envolvem um grupo alargado de pessoas ou implica uma abordagem ‘mais intimista’? “Sou só eu. Quer dizer, há um grupo de pessoas que vai comigo e me apoia, mas sou eu que visito as pessoas nas zonas com problemas. Mas sempre fiz as coisas assim”. E é bem recebida? “Depende dos países, mas quanto mais pobres as pessoas, mais as portas estão abertas. Aconteceu-me isso em países árabes, na América Latina… batia à porta para falar com as pessoas, o intérprete explicava quem eu era e o que fazia ali, e era imediatamente convidada para tomar chá ou almoçar. Em todos os bairros de lata onde fui no Egito, na Jordânia, no Uruguai, no Brasil, as pessoas eram extraordinárias! As pessoas são amiúde de uma grande doçura, abertura e generosidade.”

Uma estrutura complexa, mas com boas intenções

Vem à memória um comentário do historiador britânico Mark Mazower, que considera que o simples facto de ter sido possível criar a ONU é quase um milagre, e que as suas fragilidades são o preço a pagar. O imobilismo que tantas vezes lhe é apontado será uma delas. E a SWA, enquanto parceria, padece seguramente de problemas semelhantes, ou será que a nova presidente executiva tem margem para mudar o funcionamento e a equipa com quem vai trabalhar? “A ONU é uma máquina muito complicada, mas com boas intenções. Estando eu inserida nessa estrutura administrativa, decidi, antes de começar a exercer funções oficialmente, preparar algumas alterações ao nível administrativo e de pessoal. Vou ser honesta: isso tem de ser feito logo no início para conseguir trabalhar, caso contrário não é possível trabalhar como eu quero.”

A ideia que se tem é que o universo onde se move continua a ser maioritariamente masculino. É mesmo assim? “Depende do universo a que se refere. Se está a falar no universo dos ministros das Finanças, sim. Se está a falar no universo dos engenheiros sanitários, sim. Se olharmos para o meu conselho de administração, também. Mas se falarmos no universo da sociedade civil, da academia, aí as coisas mudaram”. E podemos falar em discriminação em relação às mulheres? “Sim, há discriminação contra as mulheres e não tem só a ver com aspetos salariais, tem a ver com a maneira como somos ouvidas e como as nossas opiniões são tidas em consideração. Quem diga que isso não é verdade está a mentir. Estou sempre a lutar pela inclusão de mulheres em painéis e reuniões ministeriais e, por vezes, tenho mulheres que me vêm dizer que a prioridade deve ser a qualidade e não há mulheres, e aí fico furiosa! Com certeza que a qualidade é prioridade, mas temos de fazer um esforço para trazer as mulheres, porque também há muitos homens incompetentes que são convidados para isto e para aquilo. Temos de fazer um esforço deliberado para falar com as mulheres, identificar as mulheres, porque muitas vezes as mulheres tendem a adotar um low profile, a apagar-se”.

Catarina de Albuquerque não seguiu esse caminho, antes batalhou para fazer a diferença e superar obstáculos. Recorda, a propósito, que aos 33 anos, perante uma assembleia de embaixadores mais velhos, algumas pessoas não a levavam a sério. Desde então já muito aconteceu, desde a elaboração de recomendações que levaram a alterações legislativas em vários países do mundo à redação daquele que é considerado como um dos mais importantes documentos recentes da área dos Direitos Humanos: o “Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos Sociais e Culturais”.

O seu empenho e dedicação foram de tal ordem, que, entre outras conquistas, conseguiu que a ONU declarasse o acesso à água potável e ao saneamento básico como um direito universal, em 2016. Um feito assinalável, sem dúvida, mas que chama a atenção para o lado mais negro do chamado “progresso” em pleno século XXI. As estatísticas mais recentes dão que pensar: 2,4 mil milhões de pessoas vivem ainda sem condições sanitárias adequadas, ou seja, cerca de um terço da população mundial. e mais de 660 milhões de pessoas não têm acesso a uma fonte de água potável.

Perante a crueza dos números, a reposta que deu ao jornal britânico “Financial Times”, quando questionada sobre a sua maior extravagância, não poderia ser mais elucidativa: “abrir a torneira e ter água a qualquer hora”.

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