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João Garcia: “O alpinismo é um desporto justo. Não ganha quem tem mais dinheiro”

Em 1999 tornou-se no primeiro português a conquistar o Monte Evereste, numa expedição em que sofreu lesões graves e perdeu um companheiro de escalada. Onze anos mais tarde, foi o décimo alpinista do mundo a cometer a proeza de escalar todas as 14 montanhas com mais de oito mil metros sem recorrer a auxílio de oxigénio artificial nem carregadores de altitude.
27 Janeiro 2020, 09h30

Apaixonado por alpinismo desde os 16 anos e praticante de escalada sem recurso a oxigénio artificial, foi o primeiro português a escalar o Monte Evereste e continua com o objetivo de ir mais além. Quando começou a sua dedicação à escalada?
Isto começou logo desde os meus 14 ou 15 anos, nos escuteiros. Tive iniciação às cordas, aos nós e às técnicas de descer na corda. Só que era tudo em cenário muito artificial e sempre tive a curiosidade de saber como é que aquilo funcionava nas grandes montanhas. E isso levou-me à Serra da Estrela, para conhecer o clube de montanhismo da Guarda. Fui de bicicleta e demorei quatro dias a chegar. E foi lá que comecei a escalar. No ano seguinte fui aos Alpes franceses subir o Monte Branco e fiquei fascinado.

Quem é que o influenciou nesta primeira aventura pela escalada?
Lá em casa ninguém praticava desportos outdoor. Ou foram revistas da “National Geographic” ou então alguma influência do ideal escutista. Mas acima de tudo foi uma sucessão de felizes coincidências. Subir ao Monte Branco foi uma experiência fantástica e percebi que o alpinismo é, de facto, um desporto justo. Só atinge o topo quem se esforça. E eu tinha-me esforçado muitíssimo, desde convencer os meus pais a deixarem-me ir, porque tinha 17 anos e era menor de idade. Quando descemos do Monte Branco, que é uma montanha com neves eternas, de 4.800 metros de altitude, percebi que tinha deixado de ser um miúdo. Depois nunca mais parei. Temos de nos superar a nós próprios, ir à procura de outras montanhas, desafios e altitudes.

A montanha foi o cenário que o marcou mais. Porquê?
Bom, então vamos falar de economia, que diz que a inacessibilidade valoriza o produto. E realmente aquilo que nós não temos são montanhas altas com neves eternas. Temos muito mar, mas deixou de me seduzir da mesma forma que a montanha. É um cenário fantástico que me marcou num momento de crescimento.

Quando foi à Serra da Estrela pela primeira vez partiu de Lisboa?
Sim, parti de Lisboa de bicicleta. Fui sozinho. Foi uma aventura fantástica. Na altura já tinha três grandes qualidades para aquilo que estava para vir: uma boa capacidade física, gosto pelo planeamento e paciência. Eu usei estas qualidades na alta montanha, que requer muita paciência e dar tempo ao organismo para se ajustar, porque tudo isso demora muitos dias.

Em 1999, atingiu o mítico cume do monte Evereste sem recorrer à utilização de oxigénio artificial. Como é que recorda essa aventura?
Eu comecei a subir montanhas em Portugal. Depois nos Pirinéus, Alpes e América do Sul. Há um crescimento lento, gradual e o Evereste acabava por ser uma questão de tempo até lá chegar. Só que infelizmente não correu bem. Eu congelei partes do meu corpo, o meu companheiro da altura faleceu [o belga Pascal Debrouwer]. Foi uma tragédia e um momento muito complicado da minha vida. Mas a dada altura consegui compartimentar algumas das causas que tinham criado toda esta situação. Percebi que tinha errado, tinha cometido muitos erros e isso tem consequências na montanha. Mas tive também de me valorizar pelo facto de ter sobrevivido. Sabia que ia ter limitações, as mãos já não são tão úteis como eram outrora, mas voltei outra vez a fazer tudo o que tinha feito. E dois anos depois tinha conseguido subir outra montanha com mais de oito mil metros, provando, acima de tudo, que se calhar não há limites. Neste momento escalar montanhas com as mãos assim é mais difícil, mas não é impossível. De alguma forma personifiquei aquele ditado que diz: “O magnífico não está em nunca cairmos mas sabermos levantar-nos sempre que caímos”.

Que erros foram esses?
Foram uma série de pequenos erros. Estávamos há demasiado tempo na expedição, com o organismo muito enfraquecido, não fomos suficientemente rápidos e não nos hidratámos o suficiente. Chegámos ao cume muito tarde quando já devíamos ter dado meia volta. Uma série de pequenos erros que levaram o organismo a entrar em shutdown.
E o seu companheiro de viagem
acabou por morrer…
Isso é um mistério. Ele desapareceu e nunca mais soubemos dele, acabando por ser dado como morto. Quando estávamos a descer foi um momento algo confuso porque ficamos a ver cada vez menos, somos cada vez mais lentos, e a dada altura perdi a consciência. E, quando voltei a acordar, deixei de saber onde é que ele estava. Às cinco da manhã, já com alguma claridade, fui montanha abaixo convencido que eu é que tinha ficado sozinho para trás. Se calhar, foi esse pânico que ainda me estimulou para descer. E quando cheguei ao último acampamento ele não estava lá.

Nessa altura teve a noção da gravidade das suas lesões?
Há certas coisas de que não temos a noção. Sabemos que estamos num grande problema e para andarmos para a frente e numa fase de sobrevivência nem queremos detalhar muito mais o quão grave está a situação.

Ter medo é importante para um alpinista?
Eu considero que sim, embora o público em geral ache que os alpinistas são pessoas destemidas. Usamos esse medo para ter bom-senso e tomar boas decisões. O medo é sem duvida essencial.

Como é que é um dia típico de um alpinista que quer chegar ao topo?
Na altura em que estava a escalar estas montanhas era um profissional. Era pago para treinar e quando estava em Portugal fazia coisas tão loucas como pedalar 600 quilómetros por semana ou correr 100 quilómetros. Eram volumes de treino bastante elevados.

Qual foi a temperatura mais extrema que enfrentou?
Curiosamente, nunca foi nos Himalaias. Entretanto, escalei por duas vezes uma montanha mítica que existe no Alasca. É uma montanha com umas condições muito rigorosas, uma influência ártica e com muita humidade. Tem uma meteorologia muito difícil. Na altura estava dentro da tenda com 40 graus abaixo de zero e lá fora estavam ventos de 60 ou 70 quilómetros por hora.

O que nunca pode faltar na mochila de um alpinista?
Depende também das escaladas de que estamos a falar. Se vamos fazer uma escalada em rocha, é preciso equipamento de segurança para a rocha, privilegiando alguns agasalhos. Se vamos para uma das grandes montanhas precisamos de já estar equipados com fatos, plumas, vários tipos de luvas, gorros, óculos, botas, um capacete, arnês, agasalho de reservas, duas garrafas de água, fogão e alguma comida.

Referiu que o alpinismo é um desporto justo. Porquê?
Isto é um desporto que não é de competição. Mas no fundo comunga com a base filosófica dos outros desportos. Há algumas modalidades que são competitivas, esta não é competitiva. Queremos é superar-nos a nós próprios. E temos conhecimento de que há uma série de desportos em que quem tem mais dinheiro ganha. Aqui não. Com estas regras eu sempre escalei as montanhas, subi da base da montanha até lá acima e sem recurso a oxigénio. É um desporto justo.

Considera que o alpinismo está a ser afetado pelo recurso ao oxigénio artificial?
Esta coisa do Evereste é mais do que uma montanha. O Evereste tornou-se um símbolo muito poderoso e o que acontece é que neste momento foi tomado de assalto por expedições comerciais. E a indústria do turismo garante condições para facilitar essa tarefa.

Além das viagens, a que outras atividades se dedica neste momento?
Palestras motivacionais são muito interessantes. As empresas precisam cada vez mais de motivar as suas pessoas e alguns atletas acabam por saciar a necessidade de motivação dos colaboradores.

O que é que os líderes de empresas podem aprender com um alpinista?
Os colaboradores são o ativo mais importante de qualquer empresa. Para já, as máquinas ainda não trabalham sozinhas. Podemos motivá-las mais com dinheiro mas a dada altura já não é só o dinheiro e a recompensa. As pessoas, quando estão empregadas, estão a vender o seu tempo de vida. E, a dada altura, as pessoas começam a pensar que não há dinheiro suficiente que pague o seu tempo de vida. Portanto, têm de recorrer a oradores externos, isentos e credíveis. As empresas cada vez mais necessitam de uma variedade de pessoas que não deixem de acreditar e que se levantem de manhã com energia para trabalhar.

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