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O temido urso russo saiu embalsamado do conflito energético com a Europa

Foi um ano marcado por muita incerteza sobre a segurança de abastecimento. A Europa não cortou completamente o cordão umbilical energético com a Rússia, um dos maiores produtores mundiais de petróleo e gás e que fica aqui ao lado, mas reduziu em muito a sua dependência e, mais importante, encontrou novos fornecedores. Para o futuro, fica também firmada a maior necessidade de apostar nas energias renováveis para garantir a independência energética.
24 Fevereiro 2023, 10h00

O urso tem sido o animal mais usado no ocidente para retratar a Rússia. Na própria Rússia, o urso também faz parte do folclore e o próprio presidente russo já usou o animal para argumentar contra o ocidente: “querem que o nosso urso se transforme num animal embalsamado?”, disse Vladimir Putin em 2014 para defender a invasão da Crimeia pela Rússia.

A invasão russa levou a Europa do céu ao inferno na energia no espaço de poucas semanas. Preços do gás e petróleo (e também da eletricidade) dispararam, levantando a questão eterna: como substituir a Rússia enquanto fornecedor privilegiado de energia da União Europeia?

Curiosamente, no espaço de um ano a Europa Ocidental deixou de depender (tanto) da Rússia, encontrou novos fornecedores e melhorou a sua segurança de abastecimento. Mas foi um longo caminho para aqui chegar.

Um ano depois é possível dizer que o temido urso russo foi embalsamado pela Europa. Mas ainda é cedo para cantar totalmente vitória.

Gás natural: como estava a Europa antes da guerra?

As importações totais europeias atingiram os 5.800 milhões de metros cúbicos na semana sete deste ano, face aos mais de 6.900 milhões/m3, há um ano, segundo os dados do Instituto Bruegel. Esta queda na importação deve-se ao menor consumo de gás natural na região devido a um inverno mais ameno registado este ano.

Da Rússia chegaram na semana sete deste ano 500 milhões/m3, enquanto que há um ano superavam mais de 1.900 milhões/m3 de gás; em 2021, superavam os 3.100 milhões/m3 de gás. Da Noruega são importados agora 1.700 milhões de metros cúbicos; eram mais de 1.800 milhões/m3 há um ano. Da Argélia (via pipeline) chegam 583 milhões m3 de gás, enquanto que há um ano chegavam 678 milhões.

Via marítima, através de gás natural liquefeito (GNL) chegam mais de 2.300 milhões de metros cúbicos de gás; eram mais de 2.000 milhões há um ano.

O envio de gás russo por gasoduto caiu completamente no Nord Stream (que foi sabotado no verão), através da Ucrânia e através do pipeline Yamal, via Polónia. Mas o gás russo continua a chegar via Turkstream que entra na UE via Turquia, num total de 236 milhões/m3.

Em termos de GNL, a maioria das importações teve origem nas Américas (EUA e Trinidad e Tobago) com 4.400 milhões/m3 em janeiro. Segue-se África (Angola, Nigéria, Egipto, Camarões e Guiné Equatorial) com quase 2.400 milhões; Médio Oriente (Qatar, Omã e Emirados Árabes Unidos) com 1.500 milhões; Rússia com 1.550 milhões. Em janeiro de 2022, o ranking era liderado também pelas Américas (4.500 milhões), seguido das Áfricas (2.500 milhões), Médio Oriente (1.400 milhões) e Rússia (1.300 milhões).

Gás natural: como está agora a Europa?

Os preços do gás natural atingiram um máximo histórico a 26 de agosto (320 euros/MWh). Esta semana negociavam nos 50 euros/MWh.

A quota da Rússia no mercado global de gás recuou de 25% em 2021 para 13% em 2023. No caso da UE, a dependência face à Rússia caiu de 40% para 10%.

As compras de gás russo pela UE caíram 60% em 2022 para 62 mil milhões de metros cúbicos, face à média dos últimos cinco anos, segundo dados da Comissão Europeia citados pela “Reuters”.

Para este ano, a Agência Internacional de Energia (IEA) espera uma queda para 25 mil milhões de metros cúbicos, se os fluxos dos gasodutos via Turkstream e a Ucrânia ficarem em linha com os volumes de dezembro de 2022.

Os países da UE reduziram em 19% o seu consumo de gás entre agosto e janeiro face à média dos últimos cinco anos, segundo dados do Eurostat. A Finlândia lidera o ranking com uma redução do consumo em 57%, seguida da Lituânia (48%) e da Suécia (40%). Portugal reduziu o consumo em 17%. Apenas Malta (12%) e Eslováquia (5%) aumentaram o seu consumo neste período.

O armazenamento de gás disparou na UE: atualmente, o armazenamento situa-se nos 6.100 milhões de metros cúbicos, evaporando os 1.140 milhões registados há um ano. A utilização da capacidade de regaseificação (depois de receber gás natural líquido que chegou via rota marítima) disparou nos 11 países com essa capacidade em 2023, à exceção de Portugal, face à média de 2019-2021.

A Comissão Europeia vai agora consultar com os estados-membros para avaliar se vai alargar a medida que exige a redução do consumo do gás. Uma das preocupações é que os preços baixos do gás façam disparar o consumo. A medida vai ser discutida pelos ministros europeus da Energia num encontro informal na Suécia na próxima semana.

Portugal não é extremamente dependente do gás russo, mas mesmo assim a Rússia esteve os seus fornecedores em 2022. O ranking é liderado pela Nigéria (2,75 milhões de metros cúbicos normais (Nm3)), seguida pelos EUA (1,88 milhões de Nm3), de Espanha (493 mil Nm3), de Trinidade e Tobago (360 mil Nm3), da Rússia (281 mil Nm3) e da Guiné Equatorial (91 mil Nm3), segundo os dados da Direção-Geral de Energia (DGEG).

Petróleo: como estava antes a Europa?

Na véspera da invasão da Ucrânia, a Rússia era de longe o maior exportador de petróleo e de gás natural para os mercados globais.

A União Europeia comprava 50% das exportações de petróleo russo e 60% das suas exportações de gás, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA).

Portugal conta com vários fornecedores, mas a Rússia fica fora do lote: Brasil (3,6 milhões de toneladas) Nigéria (2 milhões de toneladas), Azerbaijão (1,1 milhões de toneladas), EUA (945 mil toneladas), Noruega (469 mil toneladas) e vários países com mais de 200 mil toneladas: Guiné Equatorial, Arábia Saudita, Argélia, República do Congo, de acordo com os dados da Direção-Geral de Energia (DGEG) mais recentes, relativos a 2021.

Petróleo: como está agora a Europa?

O barril de petróleo atingiu um máximo anual em 2022 no dia 7 de março quando o Brent atingiu os 139 dólares em negociação, semanas depois do início da invasão da Ucrânia. O Brent negoceia hoje nos 83 dólares.

Em dezembro de 2022 e depois em fevereiro, a União Europeia e o G7 impuseram um embargo na compra de crude e de produtos petrolíferos à Rússia. Já as vendas para países terceiros estão sujeitas a tetos de preços: 60 dólares por barril de petróleo, 100 dólares por barril de produtos petrolíferos.

Vários países estão a comprar mais petróleo russo, como a China, Índia ou Turquia. Algum do petróleo russo continua a chegar à Europa via o pipeline de Druzbha e a Bulgária, exceções ao embargo europeu.

A produção russa apenas caiu 160 mil barris por dia em janeiro face ao período pré-guerra, com um total de 8,2 milhões de barris diários vendidos para todo o mundo.

O Orçamento do Estado russo tem previsto o barril de petróleo Urals nos 70 dólares, acima do teto de 60 dólares.

“Em janeiro, as receitas de exportações para a Rússia estavam em 13 mil milhões de dólares, menos 36% face há um ano. As receitas fiscais russas da indústria de petróleo desceram 48% num ano”, disse à “CNBC” Toril Bosoni da Agência Internacional de Energia (IEA).

Duas das maiores economias mundiais são agora o destino de parte do petróleo russo que é usado para produzir gasóleo e gasolina e depois revender ao resto do mundo, incluindo a Europa e os Estados Unidos.

As compras pela China subiram 8% em 2022 para 1,72 milhões de barris diários, com a Rússia a ser o seu segundo maior fornecedor. Em fevereiro, Pequim deverá comprar 5,62 milhões de barris diários a Moscovo, um novo recorde.

Em termos de gás, a China comprou 11 mil milhões de dólares de gás natural à Rússia em 2022, por pipeline ou via marítima. Em termos de carvão, as compras chinesas dispararam 20% para 68 mlhões de toneladas.

As exportações chinesas em dezembro sofreram disparos assinaláveis: gasolina (+103%), gasóleo (+758%), jet fuel (+191%), segundo os dados da “Reuters”.

No caso da Índia, em janeiro as compras de petróleo atingiram 1,4 milhões de barris diários, uma subida de 9% face a dezembro. Já as compras de carvão subiram 15% para 161 milhões de toneladas em 2022, segundo dados da “Al Jazeera”.

A Índia exportou 89 mil barris diários de gasolina e gasóleo para Nova Iorque em janeiro, o máximo em quase quatro meses. Já as vendas de gasóleo com baixo teor de enxofre atingiram os 172 mil barris em janeiro, o máximo desde outubro de 2021.

Para continuar a vender petróleo ao mundo, a Rússia arranjou uma frota de 600 navios-fantasma, antigos petroleiros que agora vendem o crude discretamente pelo mundo fora. São petroleiros que navegam sem destino e sem carga, navegando no escuro: desligando sistemas de navegação para não serem detetados.

Nunca houve tantos navios-fantasma a navegar nos mares do mundo: um recorde de 311 navios, número que compara com a média de 14 navios, segundo dados avançados recentemente pela “Bloomberg”. Já em direção à Rússia seguem apenas 33 navios vazios, o valor mais baixo em registo e abaixo dos 103 em média no início deste ano.

À medida que as novas sanções à Rússia entraram em vigor, mais navios desapareceram do radar e passaram a navegar às escuras desde 5 de fevereiro, quando entrou o embargo aos produtos petrolíferos russos, como gasóleo ou gasolina.

Mais de 400 mil barris diários de gasóleo russo entravam na União Europeia diariamente. Agora, arranjam-se outras formas de o combustível entrar na UE e nos EUA.

Estes navios recorrem a diferentes práticas: transferência de carga em alto mar, manipulação de sistemas de navegação para permanecerem invisíveis e permanecerem em áreas onde podem contrabandear petróleo/combustíveis, segundo a consultora marítima Windward citada pela “Bloomberg”. Se os locais mais conhecidos começarem a atrair muita atenção, vão ter de procurar novos, destaca um estudo da consultora. Isto são táticas já usadas para exportar petróleo do Irão ou Venezuela, mas agora a escala é maior.

Um dos novos centros para traficar petróleo/combustível é no mar de Alboran, ao largo de Ceuta, o enclave espanhol no norte de Marrocos. Desde que a invasão na Ucrânia começou que a região tem sido muito procurada para transferências de carga entre navios no mar. Esta zona é conhecida por ser um centro de tráfico de droga, de acordo com a consultora. A Marinha Portuguesa também já detetou transferências de petróleo ao largo de águas territoriais portuguesas na Madeira e Açores.

A China e a Índia têm sido grandes compradores de petróleo russo, que têm usado para refinar em combustíveis e depois vender à UE e EUA.

Desde o início da guerra que houve um disparo de 150% de navios, a maioria petroleiros, da Rússia, no norte de África. Atividades clandestinas por petroleiros dos Camarões dispararam mais de 4.000% no Atlântico sul ao longo de 2022. Antes da nova fase de sanções que houve um aumento de 50% na atividade clandestina destes navios no Mar Negro. 25 transferências entre navios neste mar desde agosto destinou-se a navios com bandeira do Vietname; regra geral, a atividade clandestina no Mar Negro é realizada por navios de países como Malta, Libéria ou Panamá, as chamadas bandeiras de conveniência.

O que dizem os analistas?

Fatih Birol, presidente da Agência Internacional de Energia (IEA)

“A Rússia usou a energia como arma de arremesso e não ganhou. Agora enfrenta a possibilidade de maiores declínios na produção de gás e petróleo em 2023. Não está só a perder grandes clientes, mas também acesso a tecnologias chave e financiamento devido a sanções. E muito do gás usado na Europa vai ter dificuldades em encontrar um mercado alternativo”.

“Neste contexto é importante dar crédito à resposta dos governos nesta grande e complexa crise energética. Sim, houve uma grande dose de sorte, como o inverno ameno na Europa que pressionou a procura e os preços do gás. Mas as ações dos governos e as políticas foram vitais. Apesar de ter sofrido economicamente e socialmente, a Europa fez grandes progressos em reduzir a sua dependência nos combustíveis fósseis russos e melhorando a resiliência no seu sistema energético”.

“É importante relembrar que a Europa teve sorte com o tempo ameno este inverno. Não pode dar-se ao luxo de assumir que a mesma coisa vai acontecer no próximo inverno”.

 Toril Bosoni, diretora do departamento de petróleo na Agência Internacional de Energia (IEA)

“O teto de preço foi imposto para permitir que o petróleo russo continue a chegar aos mercados, mas permitindo a redução das receitas russas. Apesar de a produção estar a chegar ao mercado, estamos a ver as receitas que a Rússia recebe do petróleo e do gás a descer”.

“Estamos a ver agora alguma realocação do comércio dos produtos, mas não vemos a mesma mudança que vimos no crude, e é por isso que esperamos que as exportações russas caiam e a produção desça”.

Marco Silva, consultor de investimentos

“O impacto da guerra na Ucrânia nos preços do petróleo e do gás natural ainda se faz sentir, mas de uma forma muito reduzida quando comparada com a dimensão atingida nas semanas seguintes ao início da invasão. A Europa conseguiu encontrar novos fornecedores, havendo no entanto uma clara pressão ascendente nos preços dado que o binómio procura/oferta mantém-se com flexibilidade reduzida, ou seja qualquer evento que reduza a oferta provocará um aumento, ainda que provisoriamente, dos preços, pressionando assim em alta a inflação. Para o resto do ano é previsível que, caso não exista alteração do cenário na guerra no leste da Europa, os preços se mantenham dentro do canal em que se encontram nos últimos dois meses, com uma margem de 10% a 20%”.

Vítor Madeira, analista da XTB

“As sanções num primeiro instante tiveram um impacto muito negativo para a Europa, principalmente por causa do corte de fornecimento de gás vindo da Rússia. Esse efeito foi agressivo e pôs em causa o crescimento da zona euro, gerando uma crise energética. Em simultâneo também afetou negativamente a economia russa e removeu a dependência energética da mesma. Os líderes europeus conseguiram fazer uma boa diversificação das fontes de fornecimento energético o que nos coloca numa situação estável. Deste modo, parece que para o próximo inverno não haverá problemas no que toca ao fornecimento energético para a Europa, visto que os stocks de matérias-primas energéticas estão neste momento bem encaminhados (assumindo que o conflito militar permaneça nestes níveis)”.

Jonathan Stern, analista do Oxford Institute for Energy Studies

“A resposta politicamente correta é que as exportações de gás via pipeline da Rússia irão terminar até ao final da década. Mas [se houver alguma espécie de acordo na Ucrânia], então pode haver algum aumento parcial no nível atual de fluxos, particularmente sob contratos de longo prazo que ainda estão em vigor, pode ser possível através das rotas da Ucrânia e do Turkstream”.

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