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“Desconhecida Num Comboio”

Jenny Diski pinta-nos uma América tão fascinante quanto repelente. Eis a sugestão de leitura desta semana da livraria Palavra de Viajante
  • Marta Teives
3 Agosto 2019, 10h04

A Tinta da China acabou de lançar um dos melhores livros de viagens pelos Estados Unidos, escrito por uma escritora que não compreendia muito bem o que era isso de ser uma escritora de literatura de viagem.

Jenny Diski escreveu dez obras de ficção, mas os livros que a tornaram realmente conhecida são aqueles em que relata as suas viagens – não muitas –, normalmente por locais distantes (como a Antártida ou o Círculo Polar Ártico) e onde buscava – mas raramente encontrava – a solidão que tanta companhia lhe proporcionava e que lhe permitia pensar os seus livros antes de começar a escrevê-los.

 

 

 

E que bem os escrevia. O seu domínio da língua materna – o inglês – era exímio e quem a puder ler no original tem umas horas de puro deleite garantidas. E momentos hilariantes, pois Diski tinha um apurado sentido de humor e muita ironia no seu olhar sobre o mundo – em particular sobre o mundo que a rodeava –, geralmente acompanhados de um enorme mau feitio e um caráter algo anti-social, fruto de uma vida nada fácil.

Nada faria prever que esta inglesa nascida em 1947, filha de um casal conflituoso (entre outros atributos), que lhe deixou terríveis memórias da infância e uma adolescência problemática, se tornaria numa escritora com uma tão extraordinária capacidade de utilizar a língua inglesa. Acolhida por Doris Lessing (com quem viria a manter ao longo da vida uma relação muito complexa), entre os 15 e os 19 anos, Jenny Diski viria a trilhar um caminho com grandes vicissitudes (incluindo internamentos em hospitais psiquiátricos e várias tentativas de suicídio), mas que a levaria a um lugar cimeiro nas letras inglesas.

As memórias dolorosas dessas primeiras décadas da sua vida são, aliás, frequentemente inseridas nos seus livros de viagem, assim como alguns exercícios de meditação e alheamento, tornando-os num objeto literário de difícil definição, mas sempre de enorme fruição para o leitor. Praticamente até à sua morte, em 2016, colaborou com a “London Review of Books”.

Em “Desconhecida Num Comboio”, Jenny Diski descreve duas viagens que fez pelos Estados Unidos no meio de transporte menos usual quando pensamos naquele país, completando um percurso quase circular. A própria viagem de ida é fora do normal, pois a travessia do oceano Atlântico é feita em cargueiro e demora três semanas. Mas, como qualquer viajante sabe, é evitando o avião que se fica a conhecer melhor os lugares e os seus habitantes.

E se há lugar que não fica aquém das expectativas são os Estados Unidos da América; seja as grandes cidades, como Nova Iorque ou Chicago, seja a América profunda – e é precisamente essa que Diski descreve, narrando conversas tidas ou meramente ouvidas durante os longos dias pelos trilhos ferroviários. E a América profunda, tão fascinante quanto repelente, é igualzinha à de “Fargo”, o filme dos irmãos Cohen, ou a “Short Cuts – Os Americanos”, de Robert Altman.

Absolutamente a não perder. Apenas um pouco perigoso para ex-fumadores saudosos.

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