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Espanha: atração pelo abismo

Podemos e Ciudadanos irromperam na arena política em 2015 e alteraram profundamente o panorama partidário.
2 Outubro 2019, 09h30

A tendência europeia tem sido de fragmentação eleitoral. Os partidos tradicionais perdem preponderância, surgem novas forças políticas e os eleitores dispersam-se pela oferta disponível. Espanha não é excepção: Podemos e Ciudadanos irromperam na arena política em 2015 e alteraram profundamente o panorama partidário.

Por isso, é curioso que estas duas forças políticas pareçam interessadas num regresso ao bipartidarismo dominado pelo Partido Popular (PP) e pelo Partido Socialista Obreiro Espanhol (PSOE), que governaram em alternância o país praticamente desde a transição para a democracia.

A aritmética saída das mais recentes eleições legislativas, realizadas a 28 de abril deste ano, sugeria duas soluções de Governo possíveis. O PSOE de Pedro Sánchez, com mais votos e mandatos, podia aliar-se à esquerda, com o Podemos, ou ao centro-direita, com o Ciudadanos. Mas nestes cinco meses os novos partidos renunciaram, na prática, à hipótese de se tornarem decisivos na formação de um Executivo.

De um lado, sem perceber a correlação de forças, o líder do Podemos, Pablo Iglesias, exigiu do PSOE pastas e influência muito superiores ao seu peso eleitoral. Chegou até a reclamar a vice-presidência do Governo e cinco ministérios, isto após ter reivindicado o controlo dos serviços de informações no período que antecedeu as eleições de abril. As sondagens mostravam um PSOE sólido e um Podemos em queda, o que levou Iglesias a suavizar as exigências, mas foi tarde. O líder do Podemos apercebeu-se do erro, o que se tornou evidente quando solicitou a intervenção do rei Filipe VI. Suprema ironia: o Iglesias republicano, que em 2015 considerava a monarquia tão ilegítima quanto anacrónica, acabou a requerer do monarca um exercício de funções que não está respaldado pela Constituição de 1978.

Do outro lado, o Ciudadanos foi vítima de si próprio. Radicalizou a campanha para as eleições de abril pedindo aos eleitores um veto ao PSOE. Para Albert Rivera, presidente do Ciudadanos, a contemporização socialista com o separatismo catalão era imperdoável não só no plano político, mas também no plano ético. Mais do que um adversário, Sánchez era o anti-Cristo. Conhecidos os resultados, que possibilitavam uma maioria absoluta entre PSOE e Ciudadanos, Rivera ficou com pouca margem de recuo. Havia uma saída estreita, a de inverter o discurso argumentando ser menos mau um PSOE apoiado pelo Ciudadanos do que entregar os socialistas nos braços radicais do Podemos e de pequenos partidos nacionalistas catalães e bascos. Porém, Rivera manteve-se firme na intransigência. Quando tomou consciência da impopularidade da sua conduta, ensaiou uma solução de recurso, igualmente tardia.

Em consequência, as lideranças de Podemos e Ciudadanos estão cada vez mais isoladas. Perderam popularidade junto das bases e afastaram-se de muitas personalidades que contribuíram para a fundação de ambos os partidos, dando-lhes consistência política e intelectual. Sem surpresa, as sondagens mostram que estão em queda, enquanto PSOE e PP recuperam parte do espaço perdido nos últimos anos. Em suma, os partidos que nasceram para mudar o cenário político acabaram por revelar alguns dos vícios e das insuficiências que se propuseram combater.

Como a imprensa espanhola realçou, é verdade que Sánchez revelou sintomas evidentes de adição a jogos de azar ao preferir apostar cenários eleitorais e em sondagens favoráveis. Desde abril que o secretário-geral socialista e presidente do Governo em funções revela uma vontade indisfarçável de regressar às urnas. Mas a política é a arte do possível e as idiossincrasias e ambições de Sánchez são há muito conhecidas, razões pelas quais Podemos e Ciudadanos deveriam ter seguido estratégias diferentes. Não foi assim. Espanha vê-se agora obrigada a celebrar eleições legislativas pela quarta vez em quatro anos, a 10 de novembro.

Na opinião pública, a lógica de trincheira que tem imperado, caracterizada por debates acalorados, foi substituída por deceção e impaciência generalizadas. Por culpa própria, os novos partidos terão perdido a capacidade de tirar proveito das insatisfações. Nem mesmo o Vox, força política da direita ultramontana que elegeu deputados pela primeira vez há cinco meses, conseguirá dividendos significativos – ao contrário do que sucedeu em abril, desta vez a ameaça da extrema-direita não deverá contribuir para o crescimento eleitoral da esquerda.

Apesar da previsível recuperação de PSOE e PP, o regresso de Espanha ao bipartidarismo é improvável. A atração pelo abismo dos novos partidos poderá até favorecer o aparecimento de outras forças políticas, algo em que acredita Iñigo Errejón, antigo lugar-tenente de Iglesias, que se apresentará às legislativas com o apoio de uma plataforma eleitoral autónoma nascida em Madrid após ter rompido com o Podemos.

Assim, as próximas eleições de novembro não serão uma mera repetição, mas sim um novo teste ao sistema de partidos pós-bipartidarismo num contexto de degradação contínua da confiança dos eleitores nos eleitos. Não se antevê um resultado que propicie uma maioria clara e estável. O bloqueio governativo tem, portanto, condições para durar.

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