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Macron: um presidente pós-União Europeia

Jura fidelidade à Europa, mas comporta-se como se isso fosse meramente conjuntural. E os problemas com o caso Benalla pouco afetam o homem que manda na única potência nuclear europeia pós-‘Brexit’.
19 Agosto 2018, 15h00

Duas moções de censura, uma da direita outra da esquerda parlamentares, a que o presidente francês Emmanuel Macron sobreviverá com facilidade – eventualmente tendo de ensaiar a sua primeira remodelação governamental – antes de se dedicar, já hoje, a assuntos mais sérios: receber a primeira-ministra britânica e o marido na sua casa de férias.

É esta, grosso modo, a consequência daquele que a imprensa francesa insiste em afirmar como o caso mais grave que, em termos da política interna, o presidente enfrenta desde que foi eleito em maio de 2017: o ‘caso Benalla’, o oficial da segurança pessoal de Macron, que o jornal “Le Monde” mostrou a agredir manifestantes franceses.

Se fosse só isto, o caso já seria grave, mas o que está por trás das imagens mostradas pelo “Le Monde” tem metástases escondidas e que tanto a direita d’Os Republicanos (o partido de Nicolas Sarkozy) como a esquerda reunida em torno do movimento França Insubmissa (criada por Jean-Luc Mélenchon, ‘eterno’ candidato à presidência) se tem preocupado em desmontar: a eventual criação de uma espécie de polícia (política) presidencial, paralela a qualquer corpo policial existente na República; e aquilo a que chamam a intolerável submissão do governo liderado por Edouard Philippe à agenda de Macron.

 

Despotismo

Dito de outra forma: o parlamento considera que Emmanuel Macron está a resvalar perigosamente para uma espécie de despotismo, iluminado por uma constante presença nos palcos mundiais e pela sua vontade de se intrometer em todos os assuntos da agenda global – ao mesmo tempo que menospreza os sinais internos de ‘podridão’.

É uma acusação recorrente: no auge das lutas sindicais contra as alterações propostas às leis do trabalho (um dossiê que Macron carrega desde os tempos em que era ministro da Economia de François Hollande, entre agosto de 2014 e agosto de 2016) ou no pico das greves da companhia aérea de bandeira, a Air France, que semearam o caos nos céus da Europa, Macron recebia no Palácio do Eliseu dignitários vindos dos mais diversos cantos do mundo.

Enquanto as ruas clamavam – e Alexandre Benalla aproveitava para ‘molhar a sopa’ – Macron recebia primeiros-ministros, líderes improváveis (as duas fações líbias, por exemplo), dirigentes em fuga (o primeiro-ministro libanês), curdos independentistas, palestinianos sofredores, Benjamin Netanyahu, opositores à Europa (Recep Erdogan e Donald Trump), um herói sem documentos (Mamoudou Gassama), vários DJ’s, Paul David Hewson (Bono), presidentes africanos (entre eles o angolano João Lourenço e o nigeriano Mahamadou Issoufou, que Macron recebeu acompanhado por Nemo, um Labrador de dois anos resgatado de um abrigo após ter sido abandonado) e tantos, tantos outros.

É esta azáfama internacional que leva alguns críticos de Macron a afirmarem que o presidente francês está de algum modo a preparar-se para ser o líder da Europa na circunstância (não totalmente disparatada) em que o edifício da União Europeia entre em colapso.

Sinais de que esse colapso pode acontecer são mais que muitos: a vitória dos eurocéticos um pouco por toda a Europa; a incapacidade de a Comissão Europeia resolver de forma duradoura a imigração e as suas devastadoras consequências internas); a recusa de Donald Trump em apoiar o agregado; o Brexit; a impossibilidade de consenso em torno de um orçamento europeu; a nunca conseguida união bancária; as dificuldades de o Eurogrupo conseguir remeter a austeridade para o fundo de uma gaveta; e a inoperância da Europa enquanto potência militar (no quadro de uma NATO que sobrevive no fio da navalha), entre outros.

 

Eixo Paris-Berlim?_Agora não!

Sinais de que Macron tem, no mínimo, uma ideia muito particular do que é a União Europeia, também são vários. Desde logo o facto de Macron ter esquecido uma das suas bandeiras mais pró-europeístas da fase da candidatura à presidência: o contributo francês para ‘ressuscitar’ o eixo Paris-Berlim. Depois dos primeiros encontros com a chanceler Angela Merkel, o tema foi paulatinamente caindo no esquecimento, até finalmente ter saído dos radares da imprensa, dos comentadores e dos analistas. Morreu.

Outro sinal no mesmo sentido tem a ver com o Brexit. Numa altura em que as posições da União Europeia e do Reino Unido estão a passar por uma fase de grande crispação e de extremar de posições – com a saída sem acordo a ser encarada pelos dois lados como o desfecho mais provável – é para Paris e não para Berlim ou Bruxelas que se dirigem os políticos britânicos.

Para além da visita de Theresa May a França, que começa hoje, há três dias Jean-Yves Le Drian, ministro francês da Europa e dos Negócios Estrangeiros, recebeu Jeremy Hunt, seu novo homólogo britânico, para a primeira reunião entre os dois – depois da demissão de Boris Johnson. A agenda, distribuída por Hunt, tinha os temas do costume (Síria, Líbia, etc.), mas ninguém duvidava que o Brexit era ‘o’ assunto.

Esta deriva ‘internacionalista’ de Emmanuel Macron dá-se numa conjuntura que lhe é favorável: desde que Angela Merkel esteve quase a ver o seu governo desmoronar-se – depois da ‘revolta’ do seu ministro do Interior, o bávaro Horst Seehofer – que a chanceler está ‘desaparecida do combate’. Exemplo claro disso foi a sua prestação na cimeira da NATO, onde, acusada diretamente e com todas as letras por Donald Trump de ser uma ‘lacaia’ de Moscovo (por causa da fatura do setor energético), optou por não responder à letra – opção que contrasta com a sua prestação na cimeira de um ano antes, também em Bruxelas, na final da qual se mostrou publicamente muito desagradada com o modus operandi do presidente norte-americano.

Por falar-se em NATO, é de recordar que, após o Brexit, a França é a única potência militar nuclear da União Europeia – o que, só por isso, lhe confere uma posição estratégica mundial de relevo.

Voltando atrás: para além do despedimento de Alexandre Benalla, talvez a única consequência relevante do caso venha a ser o igual despedimento de Gérard Collomb, ministro do Interior. “O ministro do Interior sai amachucado deste caso: as forças policiais têm a impressão de que ele as abandonou, o executivo não o achou muito solidário” ao longo da crise, disse um deputado da maioria ‘macronista’ do En Marche ao “Le Monde”. Collomb parece ter os dias contados e poderá ser a única vítima política do caso Benalla.

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