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Shadow Banking: Banca pede condições de concorrência iguais para todos

Os bancos já não estão sozinhos na concessão de crédito a empresas porque há um conjuntos de operações e intermediários financeiros que dão crédito de forma “informal” e não regulamentada a quem não tem acesso à banca.
25 Março 2024, 21h00

Quais os ricos que o shadow banking representa para a banca?

Miguel Maya, CEO do Millennium 

A afirmação de que os bancos são hoje menos importantes para a concessão de crédito do que costumavam ser não me parece de todo correta, pois a sua relevância não se afere apenas pelo valor do crédito em balanço v.s. a totalidade do crédito à economia. Importa também assinalar que o crédito desintermediado não pressupõe, de todo, que se trate de atividades na área do shadow banking. Há operadores não bancários, regulados, com enorme relevância para a sociedade.

A crise financeira global vivida no início da década passada expos um conjunto de fragilidades no funcionamento do sistema bancário, as quais se traduziram em perdas muito relevantes para clientes, investidores e contribuintes. Os reguladores, com especial destaque para o europeu, procuraram prontamente identificar as causas mais profundas que estiveram na origem das vulnerabilidades que desencadearam a crise e implementaram um vasto conjunto de reformas, quer ao nível da regulação quer ao nível da supervisão, as quais vieram robustecer substancialmente o sistema financeiro ao nível da governance, dos requisitos de solvabilidade, do enquadramento regulamentar, dos processos e modelos de negócio.

Registou-se um progresso notável de robustecimento do sistema bancário de que todos os cidadãos beneficiam.

O reforço verificado ao nível da regulação e da supervisão veio tornar o exercício da atividade bastante mais exigente e assegurar um elevadíssimo escrutínio, aumentando também a responsabilização dos diversos operadores. Quando tal acontece, quando aumenta a regulação e o escrutínio, a história demonstra que há sempre um conjunto de entidades, chamemos-lhes assim, que procuram explorar oportunidades na franja ou mesmo fora do enquadramento regulatório dos Bancos, tirando partido da informalidade, da ausência de controlo e da agilidade que sempre tem quem não joga de acordo com a regras.

O shadow banking não é algo novo, sempre coexistiu, com menor ou maior preponderância, com o sistema bancário. O que evoluiu muitíssimo nas últimas décadas foi a tecnologia e a respetiva capacidade para suprimir barreiras físicas e regulamentares, criando um espaço de escala global em que se pode exercer atividade financeira com regulação dispersa e jurisdição incerta, condicionando muito não apenas a atividade de supervisão como também a identificação e responsabilização das pessoas singulares e ou coletivas que possam ter atuado de forma negligente.

O shadow banking condiciona também a capacidade de os Bancos Centrais assegurarem a transmissão da política monetária de uma forma eficiente. Desde 2008, ou seja, desde a crise financeira global, a atividade na esfera no shadow banking mais do que duplicou. Dá que pensar. Não foi seguramente por incapacidade de resposta – dentro das regras – dos bancos europeus, como resulta evidente dos robustos rácios de capital e liquidez que apresentam.

Os riscos do shadow banking são reais e muito abrangentes, pois quando um ou alguns desses operadores com caracter mais sistémico falhar, como sempre pode acontecer, até com as entidades reguladas, a economia como um todo, empresas, famílias e instituições, sofrerão perdas relevantes sem poderem recorrer, como acontece no sistema regulado, a mecanismos de reação e mitigação, de que são exemplo o Fundo de Resolução ou o Fundo de Garantia de Depósitos.

A atenção e delimitação das áreas de atuação desses operadores, se quisermos mitigar os impactos de uma eventual nova crise financeira global, tem de constituir uma prioridade central dos Governos e das Autoridades, pois, caso não o seja, as consequências, já hoje previsíveis e antecipáveis no âmbito, podem destabilizar não apenas o progresso económico, mas também a forma como nos organizamos e vivemos em sociedade.

Um sistema financeiro bem regulado e bem supervisionado, com incentivos adequados à inovação e à geração de valor para os diversos stakeholders tem e continuará a ter um enorme valor para sociedade.

Não implementar um modelo regulatório robusto para os operadores e atividades na área do shadow banking equivale a colocar riscos muito relevantes fora do campo de visão, mas eles estão lá, permanecem, e quando se materializarem será muito mais difícil de antever os seus efeitos e de mitigar as suas consequências.

João Pedro Oliveira e Costa, CEO do Banco BPI

É verdade que o crédito tradicional concedido internamente pelos bancos tem menos peso no financiamento da economia e é também verdade que existe uma concorrência crescente de outros operadores e intermediários financeiros no sistema global, como por exemplo as fintech, os fundos de investimento, os hedge funds e até mesmo algumas plataformas de empréstimos peer-to-peer. Nem todas estas formas podem ser consideradas shadow banking, mas o essencial, nesta matéria, é que a regulação assegure aquilo a que se chama o “level playing field”, isto é, a garantia de que as condições de concorrência são iguais para todos. É geralmente reconhecido, de facto, que a crescente exigência da regulamentação bancária tem contribuído para uma actuação mais conservadora da banca tradicional, criando espaço para estes novos actores, que não estão sujeitos às mesmas exigências, no que respeita à gestão e controlo de riscos, o que lhes permite apresentar uma oferta mais flexível, com potenciais efeitos negativos na estabilidade futura dos mercados e da própria economia. Parece-nos assim muito importante criar uma maior uniformização regulatória, sem prejuízo de poderem os bancos continuar a desenvolver, como já hoje fazem, modelos de parceria com fintechs, por exemplo, investindo na digitalização e automação de processos, com a inerente criação de valor para os seus clientes.

No caso do BPI, o crescimento desta oferta alternativa não tem aliás impedido o Banco de aumentar significativamente o volume de crédito concedido e a sua quota de mercado neste domínio.

Vítor Bento, presidente da APB

O shadow banking embora não tenha um entendimento necessariamente consensual, pode ser definido como um sistema de intermediação de crédito que envolve atividades e entidades fora do sistema bancário tradicional e da sua regulação e supervisão.
Estas entidades devido, nomeadamente, (i) ao menor grau de regulação; (ii) às atividades que desenvolvem ao nível da transformação de maturidades e de liquidez, (iii) ao facto de não beneficiarem de sistemas de garantias de depósitos; (iv) à sua alavancagem; e (iv) à dependência de condições prevalecentes nos mercados financeiros, constituem, como tem sido referido pelas entidades de supervisão, uma fonte de risco potencialmente sistémico.

A desigualdade regulatória que impende sobre os dois sectores – bancário formal e shadow banking – além de desnivelar, desfavoravelmente, o terreno onde concorrem, proporciona oportunidades de arbitragem regulatória, que favorece o alargamento da quota de atividades menos reguladas e, por essa via e dado o fácil contágio sistémico, uma maior acumulação de riscos para a estabilidade de todo o sistema financeiro.

Em Portugal, todavia, este risco parece, por enquanto, estar mais contido do que em toda a Zona Euro.

É saudável, para o progresso económico e social a existência de diversas atividades conducentes a uma mesma finalidade, concorrendo entre si e respondendo a várias especificidades e preferências dos agentes económicos. Mas, quer os princípios de justiça, quer a própria eficiência económica requerem que atividades semelhantes, facilmente comunicáveis entre si e com riscos semelhantes, sejam sujeitas a regras, incluindo as fiscais, e a mecanismos de supervisão também semelhantes.

Pedro Sales, manager de Financial Services da Capgemini Portugal

A Finança Invisível, ou shadow banking, impacta o negócio da banca e à medida que mais produtos se integram no nosso quotidiano, elimina as oportunidades de empréstimo e de serviços de investimento tradicionais, reduzindo também as receitas provenientes de taxas sobre contas e pagamentos. Se os produtos forem usados para transações transfronteiriças, há ainda o potencial de perda de negócio de câmbio para os bancos. Mas existem implicações ainda mais amplas para os governos, reguladores e indústrias não financeiras. Embora a Finança Invisível esteja atualmente além das considerações da maioria dos CEOs de bancos, há um forte argumento para começar a avaliar e a agir. Deve-se tanto à incrível oportunidade de expandir os negócios de um banco quanto à ameaça significativa à sua existência.

Os nossos estudos mostram que os “Next-generation Banking Models” exigem uma abordagem fundamentalmente diferente para a estratégia de negócios, bem como para o modelo financeiro e operacional. Com base na nossa experiência em reengenharia de modelos de negócios e em transformação digital, identificamos 12 chamados “superpoderes”, que os bancos devem desenvolver para prosperar e manter-se à frente de concorrentes que jogam com regras diferentes e com estratégias, classes de ativos e modelos operacionais assimétricos:

  1. Direção: visão audaciosa que molda o ADN digital necessário para habilitar estratégias de negócios distintas;
  2. Novos estilos de liderança, mentalidade e comportamento;
  3. Modelos de negócios inovadores e ágeis;
  4. Foco: obcecado com a Experiência do Cliente;
  5. Novos produtos e serviços através da cocriação, baseada em novas tecnologias;
  6. Conectado e às vezes invisível;
  7. Sustentável e impulsionando a economia circular;
  8. Fundação: seguro, em conformidade e gestão de riscos de maneira inteligente;
  9. Atração e retenção de talento de alto nível;
  10. Construído sobre plataformas e arquiteturas de TI flexíveis;
  11. Projetado para Operações Zero manuais;
  12. Orientado por insights e preditivo.

Estes superpoderes conduzem-nos aos modelos bancários de nova geração e, sendo mais provocadores, acreditamos que “a banca digital foi ontem” pelo que o presente e o futuro pertence aos bancos que agirem agora (re)inventando o seu futuro, em vez de deixarem que outros definam o seu destino por eles.

Sebastião de Lancastre, CEO e fundador da easypay

Com a globalização dos mercados financeiros e a estruturação de operações cada vez mais complexas, o shadow banking desempenha um papel relevante no atual sistema financeiro. Todavia, o potencial de risco é muito superior ao risco que realmente existe, e isto verifica-se porque apesar da evolução da banca tradicional ainda se realizar de uma forma muito burocrática, criando atritos nos processos de automatização e de digitalização, o shadow banking também tem dificuldades em distribuir os seus serviços. O potencial de risco é muito grande porque os bancos, apesar de estarem em processo de evolução, ainda não se conseguem adaptar à rapidez que as novas tecnologias exigem nos dias de hoje, que é uma resposta na palma da mão. O modo de atuação da banca tradicional ainda é muito retrógrado, com atuações complexas que por vezes inviabilizam a execução e conclusão do processo. E como os sistemas são difíceis de implementar na banca tradicional são, precisamente, os neobanks e as fintechs, empresas voltadas para a utilização da tecnologia e a inovação, que favorecem a renovação do sistema financeiro.

A regulamentação existe e são as empresas focadas no desenvolvimento tecnológico que tomam uma posição mais relevante no mercado, ao descentralizar uma série de operações. Desta forma, a experiência torna-se desmaterializada, e sem atrito, ao permitir aos consumidores soluções que possam ser acedidas de uma forma fácil, rápida e sem burocracias, permitindo a obtenção de uma resposta imediata. Mas ainda que o produto ou serviço seja muito melhor do que o dos Bancos, o canal de distribuição é difícil de montar e tornar-se relevante.

Em resumo, as fintechs estão a crescer a uma velocidade muito superior à banca tradicional ao apresentarem ferramentas adequadas e adaptadas aos consumidores, tornando este sistema como uma oportunidade de mercado, mas os canais de distribuição dos seus produtos são a maior barreira a um maior sucesso.

Telmo Santos, Co-CEO da Eupago

Hoje, existe um conjunto de instituições financeiras não bancárias (NBFI em inglês e genericamente designadas por shadow banks) que também intervêm na concessão de crédito à economia.

Nos sistemas financeiros mais sofisticados, esta intervenção não ocorre de forma informal porque estas instituições são reguladas e supervisionadas, embora tal possa ocorrer em jurisdições com um enquadramento menos rigoroso.

Tal como os bancos, as NBFI caraterizam-se por, na concessão de crédito, procederem a uma transformação dos riscos de crédito e de maturidade dos seus ativos relativamente aos passivos que os financiam.

Estes riscos, que não são exclusivos das NBFI, advêm não apenas dos fatores supracitados, mas sobretudo, da existência de alavancagem excessiva que pode ampliar uma deficiente avaliação e tomada de risco de crédito.

Se as NBFI recorrerem à alavancagem, tal pode acarretar o risco de exposição a situações de concentração temporal de pedidos de reembolso dos fundos aplicados pelos investidores nas NBFI, em alturas em que a solvência destas (ou a sua liquidez) são questionadas.

O que distingue as NBFI dos bancos é que as NBFI não beneficiam de uma garantia explícita quanto ao valor de parte dos seus passivos (a garantia de depósitos) nem de um Banco Central que fornece financiamento de último recurso, se verificada previamente a continuidade da solvência de um seu banco supervisionado que esteja em situação análoga.

Desta forma, os riscos das NBFI para a estabilidade do sistema financeiro resultam de dois pontos de interconexão com o setor bancário que podem facilitar a migração de riscos, sendo eles: os financiamentos de bancos às NBFI e contágios por vendas forçadas em larga escala de ativos financeiros que sejam detidos simultaneamente pelas NBFI e por bancos.

Sohail Sultan, Chairman do iibGroup

Os bancos desempenham um papel fundamental na estrutura de qualquer economia. Uma das suas principais funções é a de desintermediadores do crédito. Ou seja, os depósitos que atraem dos clientes são utilizados não só para apoiar o fluxo de dinheiro para fins transacionais, mas também, e o que é igualmente importante, para a concessão de crédito para impulsionar o crescimento económico.

Nos últimos anos, com o surgimento de novas plataformas bancárias, uma série de funções críticas desempenhadas pelos bancos têm estado sob ataque, tanto do lado das transações como do lado do crédito. O risco destes novos operadores será determinado pelo nível de inovação e de regulamentação que lhes for aplicado.

Se estas quase instituições financeiras estiverem sujeitas a uma regulamentação menos rigorosa, poderá surgir um risco para o cliente com quem interagem, seja relativamente aos depósitos, aos pagamentos transacionais ou mesmo aos empréstimos. Shadow banks mal regulamentados podem levar a padrões de crédito de empréstimo mais baixos, bem como a um aproveitamento em relação aos clientes em termos de preço. Isto pode, em última análise, gerar perdas para os clientes ou, pior ainda, levar à ocorrência de um nível de contágio financeiro dependente da dimensão destes operadores.

Em contrapartida, a inovação e a tecnologia, nomeadamente no setor financeiro, conduziram a um leque mais vasto de produtos e plataformas financeiras. Uma regulamentação adequada permitirá conter os riscos e reduzir potencialmente os custos para os clientes, assegurando, simultaneamente, maiores volumes a custos mais baixos para as instituições financeiras que adotem uma abordagem inovadora.

Rodrigo Lourenço, partner de Advisory da KPMG Portugal

A definição de shadow bank é em si mesma difusa e inclui entidades de natureza muito diversa. Talvez as casas de penhora sejam o exemplo mais tradicional de um shadow bank mas a definição enquadra igualmente algumas das atividades de entidades como fundos de crédito, private equities e fundos soberanos, entre outras.

Os shadow banks têm em comum a característica de parte do seu negócio ter algum nível de sobreposição com o negócio dos bancos, mas sem que estejam sujeitas ao mesmo nível de regulação e escrutínio que os bancos centrais aplicam às instituições sob sua supervisão.

Consequentemente, os shadow banks conseguem atuar com um grau de flexibilidade que não está ao alcance dos bancos, sendo por isso concorrentes relevantes em algumas áreas de atuação. A título de exemplo, nas últimas décadas têm-se observado mundialmente um crescimento acelerado do volumes de ativos de fundos soberanos, fundos de pensões e sob gestão das private equities internacionais, ativos esses que, em parte, poderiam ter sido capturados pelas instituições bancárias.

Mário Trinca, managing director da Alvarez & Marsal Portugal

O último relatório disponível do Financial Stability Board (FSB) sobre Non-bank Financial Intermediation (NBFI), refere que a dimensão deste setor reduziu em 2022, pela primeira vez desde 2009, e que pode ser largamente atribuída à existência de juros mais elevados.

A este setor, normalmente associam-se algumas limitações na transparência e regulação, por operarem fora das regras bancárias, o que pode dificultar a supervisão, por reguladores e investidores, para monitorarem riscos. Outras limitações comumente referidas estão relacionadas com:

  • Risco Sistémico: problemas em NBFI podem se espalhar para instituições reguladas e vice-versa, produzindo crises financeiras.
  • Risco de Contraparte: Os NBFIs podem estabelecer redes complexas de empréstimos e financiamentos. A falha de uma instituição pode induzir vários incumprimentos.
  • Muitos NBFIs investirem em ativos de longo prazo com capital de curto prazo. Se as condições de mercado mudarem subitamente e os fundos se tornarem limitados, esse mismatch pode produzir problemas de liquidez.
  • Os NBFIs poderem aproveitar gaps regulatórios que criam um campo de jogo desigual e incentivam a tomada d1e riscos que um sistema regulado limitaria.

Mas importa referir que NBFI complementam os serviços bancários tradicionais e beneficiam a indústria financeira, como um todo. Os NBFIs:

  • podem aumentar a liquidez do sistema financeiro e a disponibilidade de empréstimos, particularmente em áreas onde os bancos tradicionais são reticentes em emprestar.
  • lideram produtos e serviços financeiros inovadores para atender às necessidades em evolução de investidores e mutuários.
  • distribuem o risco de forma mais uniforme pelo sistema financeiro.
  • oferecem outras possibilidades de investimento além dos canais bancários tradicionais.
  • financiam startups inovadoras, projetos de infraestrutura e outras áreas onde a banca tradicional carece de expertise ou capacidades de gestão de risco.

Um relatório recente da FSB indicou que os NBFIs representam uma maior parte dos ativos financeiros em países como Irlanda, Luxemburgo, Suíça e Países Baixos na Área do Euro. Países com maior PIB real per capita. Risco ou um verdadeiro motor de crescimento?

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