O comboio português pode e deve ir cada vez mais longe, defende Francisco Furtado, especialista em Transportes e analista no Fórum Internacional do Transporte (FIT/ITF) parte da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Duas perguntas ao autor do ensaio “A ferrovia em Portugal – Passado, presente e futuro”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Se a ferrovia é o único meio de transporte “que já se encontra largamente e eletrificado, ou seja, passível de transportar bens e pessoas em larga escala e no presente com emissões zero, sem recurso a combustíveis fósseis importados”, o que falta para ser uma opção verdadeiramente estratégica? É apenas uma questão de vontade política?
A vontade política é sem dúvida uma condição indispensável. Portugal é o único país da UE onde existem mais quilómetros de autoestrada do que linhas de caminho de ferro. Lisboa e Porto são a segunda e terceira áreas metropolitanas da Europa com maior densidade de autoestradas. Isto não aconteceu por acaso, é fruto de decisões políticas e da estratégia de reconversão industrial delineada no final da década de 80, aquando da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia.
Decisões erráticas têm graves consequências, que se manifestam por largos anos. As tarefas de modernização e manutenção pesada na Linha do Norte, iniciadas na década de 1990, ficaram incompletas porque, antes de se concluírem as obras em todos os troços, foi tomada a decisão de investir na alta velocidade. Tal nunca veio a acontecer, o que provavelmente até foi positivo para o desenvolvimento global da ferrovia portuguesa, mas, entretanto, nem a linha existente foi completamente renovada nem foi construída uma nova.
A coluna vertebral da rede ferroviária portuguesa ficou assim quase 20 anos sem investimentos globais e estruturais de significado qualitativo, com o material circulante adquirido nos anos 90 (Alfa Pendular) ainda hoje incapaz de atingir a sua máxima performance (220 km/h) em vários dos troços da linha. O caminho de ferro requer estabilidade na prossecução de objetivos ao longo de horizontes temporais alargados que, necessariamente, atravessam várias legislaturas. O retorno do investimento, nomeadamente em infraestrutura, requer um período longo, medido em décadas. A conclusão e prossecução desses investimentos exigem estabilidade e um compromisso de longo prazo.
Em Portugal verifica-se uma tendência para que o debate caia numa certa bipolaridade. Por um lado, a atitude de desvalorizar o setor e encará-lo como uma espécie de relíquia que se vai mantendo por inércia; por outro, a visão que, tal como no século XIX, a ferrovia deve servir todas as necessidades de mobilidade em todo o território, ou que sem megaprojetos de elevado risco económico-financeiro não existe solução possível. Um primeiro passo para uma discussão produtiva sobre o futuro da ferrovia é sair deste dilema.
Termino com uma observação, a ferrovia já é estratégica. Basta pensar no que aconteceria se durante um mês não houvesse qualquer ligação ferroviária no país, nomeadamente nas áreas metropolitanas do Porto e Lisboa. Cerca de 90% de todos os contentores que saem para terra do Porto de Sines são transportados pela ferrovia, as minas de Neves Corvo escoam a sua produção por comboio e muitas importantes indústrias (ex., papel) recorrem ao caminho de ferro.
A questão não é se a ferrovia é estratégica, mas como potenciar ao máximo a sua contribuição para o desenvolvimento económico e social do país, revitalizar o sector e garantir a sua sustentabilidade financeira. Questões indissociáveis que são o fio condutor do ensaio que escrevi – “A ferrovia em Portugal: Passado, presente e futuro”.
A pandemia de Covid-19 vai ajudar a repensar a aposta no desenvolvimento do setor?
A pandemia tem efeitos contraditórios e os seus impactos de longa duração são ainda incertos. No transporte de mercadorias, a maior atenção dada à resiliência das cadeias logísticas e um relaxar das tendências do “just-in-time” são favoráveis à ferrovia. Além disso, um comboio tripulado por duas pessoas faz o mesmo do que 40-50 camiões, o que do ponto de vista sanitário acarreta grandes vantagens. Mas o mesmo não pode ser dito para o transporte de passageiros, sobretudo nas grandes áreas metropolitanas.
A longo prazo, o aumento do teletrabalho pode conduzir à relocalização de partes da população para áreas mais rurais e cidades de menor dimensão, o que deverá conduzir a novas reflexões em torno do reforço da conectividade ferroviária a essas zonas e dos serviços de cariz regional – por exemplo no Algarve, Alentejo, ou Linha do Vouga.
No entanto, o fator que me parece mais decisivo será o tipo de incentivos à recuperação económica a ser adotados. Irão os governos dos países europeus e a própria União Europeia aproveitar este momento para reforçar o “green deal” e a associada reconversão industrial que visa libertar o continente da dependência dos combustíveis fósseis? Será este o momento em que a Europa se assume como líder mundial nesta transição energética e no combate às alterações climáticas? Ou irá esta ambição ser preterida em prol da manutenção do statu quo?
O discurso aponta para uma agenda que aposta na sustentabilidade, onde a ferrovia terá um papel de destaque na área da mobilidade e logística. Mas como sabemos, entre o discurso e a realidade no terreno por vezes há uma grande distância…
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