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Robôs: a ‘espécie’ que cada vez mais nos rodeia e que adoramos odiar

Podem fazer desaparecer mais de um milhão de empregos só em Portugal, assumem formas muito diferentes daquelas que a ficção científica cristalizou no imaginário dos humanos, e torna-se cada vez mais claro que vieram para ficar, num mundo em que a inteligência artificial provoca medo e fascínio em simultâneo.
23 Fevereiro 2019, 11h00

Medo e fascínio. Atração e repulsa. Imaginação à solta. Quem não se perguntou ainda como seria o mundo se fosse invadido por máquinas, quem não tremeu ao imaginar-se à mercê do Exterminador Implacável, quem não hesitou perante a “natureza humana” dos replicantes em “Blade Runner”…?

Agora vamos refrear um pouco a imaginação e pensar nas inúmeras questões de ordem ética, social e política que a atual explosão no mundo da robótica tem levantado. Pensar na enorme ambivalência que desperta em nós e que tende a traduzir-se numa visão antagónica – robô salvador vs. robô destruidor, amigo vs. inimigo – sendo que o medo tende a ser o sentimento que prevalece. Medo de perder a primazia no topo da evolução e, em última instância, medo de sermos substituídos por máquinas.

Ainda nem esmiuçámos o impacto que a robotização pode ter na nossa vida e já nos poderemos sentir tentados a dar razão a Alan Kay, nome de referência das ciências informáticas nos EUA, que disse, nos já ‘remotos’ anos 80, que “a melhor maneira de prever o futuro é inventá-lo.” E, diríamos nós, controlá-lo. Até porque não faltam avisos de que uma nova superinteligência está a ameaçar a nossa civilização. Stephen Hawking, nos últimos anos de vida, alertou numerosas vezes para o facto de a inteligência artificial poder acabar com a espécie humana, embora comunicasse através de um sintetizador de voz que usava… inteligência artificial.

Calibrar pessimismo e otimismo

Fala-se muito no facto de a robotização, a IA, o envelhecimento populacional e as novas formas não convencionais de emprego, como a chamada gig economy (ou economia do biscate), poderem resultar numa tempestade perfeita que vai pôr em causa o mercado de trabalho. O estudo “Automação e o Futuro do Trabalho em Portugal” da CIP – Confederação Empresarial de Portugal, elaborado em parceria com o McKinsey Global Institute (MGI) e a Nova School of Business and Economics, divulgado recentemente, alerta que a adoção da automação em Portugal pode resultar na perda de 1,1 milhões de empregos na indústria e comércio até 2030. Isto porque se estima que “cerca de 50% do tempo despendido nas atuais atividades laborais poderia ser automatizado com as tecnologias atualmente existentes, o que representa um elevado potencial de automação quando comparado com outros países”, lê-se no estudo, segundo o qual “em 2030 essa percentagem de tempo crescerá para 67%”.

Mas nem tudo são más notícias. O impacto da automação também pode ser positivo e criar outros tantos empregos na saúde, assistência social, ciência, profissões técnicas e construção. O estudo considera a transformação digital da sociedade e da economia nacionais “uma enorme oportunidade”.

Tecnologia vs. ideologia

Na cultura popular, o futuro é visto pela lente da distopia. Da literatura ao cinema, passando pela música – terão a estética e sonoridade inconfundíveis dos Kraftwerk caído no esquecimento? –, as imagens que nos habitam falam por si: “Metropolis”, “2001: Odisseia no Espaço”, “Guerra das Estrelas”, “Blade Runner”, “Exterminador Implacável”, “The Matrix”… a lista seria infindável e ociosa. Mas recuperamos um dos momentos de maior tensão e suspense no filme de Stanley Kubrick, quando HAL, o supercomputador, assume o controlo da nave espacial e aniquila (quase) toda a tripulação. “Abre as portas, Hal”. “Lamento, mas não posso fazer isso, Dave.” O humano põe fim ao suplício desligando a máquina. Simples. Será?

Amelie Klein, curadora do Vitra Design Museum, na Alemanha – e uma das curadoras da exposição “Hello, Robot. Design Between Human and Machine”, patente no MAAT, em Lisboa – não hesita perante a pergunta: confia nos robôs? “Sim, totalmente. Agora, será que confio nas pessoas que estão por trás dos robôs? Não propriamente. Muitas vezes pensamos que estamos a falar em tecnologia e não é o caso. Estamos, sim, a falar em ideologia. Há um exemplo muito simples na exposição que coloca algumas questões éticas: um conjunto de cenários criado por um coletivo de designers, chamado Automato.farm, para carros autónomos.”

“Um carro autónomo é considerado um robô. Agora imaginemos que um carro autónomo só pode escolher uma de várias opções, todas elas más. Dois exemplos: atropelo uma mulher com um carrinho de bebé ou vou contra um muro e mato o condutor? Pensamos que é um problema tecnológico, mas não é. Os carros-robôs usados na experiência foram programados obedecendo a três critérios: humanístico – os mais velhos sobrevivem aos mais novos, os grupos sobrevivem aos indivíduos, e por aí fora; económico – prevalece o critério do mais barato; securitário – proteção máxima do condutor e restantes ocupantes do carro.”

“O resultado é muito distinto e não tem nada a ver com tecnologia, mas sim com ideologia. Cada robô é programado por um humano que, por sua vez, vai transmitir à máquina, quer queira quer não, os seus princípios, convicções, valores morais, etc. Não é por acaso que a inteligência artificial criada nos EUA para escolher uma beauty queen votou numa mulher branca e não numa mulher negra. Mais uma vez estamos a falar em ideologia.”

Para onde vai a democracia?

O filósofo e historiador israelita Yuval Noah Harari – que se transformou numa estrela à escala planetária ao assinar os best-sellers “Sapiens, História Breve da Humanidade” e “Homo Deus” – lançou um alerta num artigo publicado pela “The Atlantic”, em outubro de 2018. “A inteligência artificial poderá eliminar muitas vantagens práticas da democracia e destruir os ideais de liberdade e igualdade. Além disso, irá concentrar ainda mais o poder nas mãos de uma pequena elite se não tomarmos medidas para impedir que isso aconteça.” Em última análise, como realça no título do seu artigo, “a tecnologia pode favorecer a tirania.”

“No século XX, a democracia derrotou a ditadura, porque a democracia é mais eficaz a processar informação e a tomar decisões. O conflito entre a democracia e a ditadura não é apenas um conflito entre diferentes sistemas éticos, mas entre diferentes métodos de processar informação e tomar decisões. Mas não é uma lei da natureza a ideia de que o processamento de informação distribuído seja mais eficiente do que o centralizado. A inteligência artificial pode fazer baloiçar o pêndulo na direção oposta.”

Isto para não falar nas fake news, no big data e na utilização que as megacorporações fazem das pesquisas de milhares de milhões de pessoas, assim como das suas perguntas ao motor de pesquisa – e as respostas que escolhem como sendo “interessantes”, a partir da lista de opções que o motor de pesquisa devolve – para terem uma ideia de como as pessoas pensam. Pessoas reais, no mundo real, e não modelos matemáticos ou teóricos da forma como se pensa que as pessoas pensam.

A Google, a Microsoft (com o Bing) e o Baidu (motor de pesquisa chinês), mas também a Apple e a Amazon, todas alimentam poderosas inteligências artificiais tendo em vista dois grandes objetivos: apresentar pesquisas cada vez mais relevantes para o utilizador, para, primeiro, poder definir um perfil cada vez mais preciso e rigoroso e, segundo, apresentar os anúncios mais dirigidos a cada um. Na mira estará sempre a mesma meta: disseminar a informação. Errado. Aumentar o lucro.

Afinal, o que é um robô?

Nesta coisa da robótica o ponto de interrogação, vulgo pergunta, é uma constante. Antes de sucumbirmos ao pessimismo e à visão apocalíptica, que tal respirar fundo e recentrar a conversa num objeto que nos é extremamente familiar e do qual dificilmente nos separamos? Já adivinhou? Numa palavra, smartphone. Ora, esta tecnologia, que nem sequer existia há 11 anos, mostra-nos o quanto a nossa vida mudou. E o aspeto mais interessante no design é que está a mudar – e muito – os nossos comportamentos.

A pergunta é, pois, incontornável: afinal, o que é um robô? “Existe um sem-número de definições, mas nós [os curadores] escolhemos esta: é um dispositivo com sensores, ou seja, máquinas que reúnem informação, dotado de inteligência e de ferramentas que irão traduzir os resultados do processamento dessa informação em algo fisicamente mensurável, como movimentos, por exemplo. Se alargarmos a definição de robô muito para além da nossa limitada imaginação, vamos perceber que a questão não é se um dia vamos conviver com robôs, isso já está a acontecer a toda a hora, minuto”, explica Amelie Klein.

E até que ponto podemos considerar um smartphone um robô? “Regra geral, os especialistas em robótica discordam, mas diria que, em combinação com os humanos, preenche os requisitos. Tem sensores, tem inteligência e tem dispositivos que se traduzem em resultados fisicamente mensuráveis. Partindo desta definição relativamente ampla e em combinação com seres humanos, a resposta é sim.”

O conceito de design vai muito além de forma e funcionalidade, incorpora partes robóticas – o que quer dizer que o ambiente que nos rodeia é, e será, cada vez mais inteligente, autónomo e autodidata. “Uma lâmpada convencional limita-se a acender e a apagar quando pressiono um botão para cima e para baixo, enquanto uma lâmpada robótica conhece-me, estuda os meus hábitos e comportamentos. Sabe que, sempre que chego a casa, a primeira coisa que faço é descalçar-me e depois vou para a cozinha aquecer água e beber um chá. Também sabe que depois vou para a sala e gosto de luz ambiente… Ou seja, conhece os meus gostos e hábitos, e à medida que interagimos vamos construindo uma relação. A lâmpada robótica pode acordar-me de manhã com uma luz muito, muito suave, para eu despertar bem-disposta, ou pode desferir uma luz crua e brilhante para me arrancar da cama! Um pouco como se me acordasse aos berros. Resumindo, podemos pensar que são simplesmente máquinas, mas a verdade é que já temos uma relação com elas”, sublinha Klein.

Consciência vs. inteligência

Muitas pessoas tendem a confundir inteligência com consciência e presumem que, para estar ao mesmo nível de inteligência dos humanos, os robôs terão de desenvolver consciência. Mas estes podem vir a ultrapassar os humanos sem nunca ganharem consciência, porque consciência e inteligência são coisas distintas. A inteligência é a capacidade de resolver problemas, ao passo que consciência é a faculdade de fazer juízos de valor sobre os próprios atos, como identificar a sensação de prazer, dor, etc.

Além disso, inteligência também não deve ser confundida com motivação – e menos ainda para “fazer o mal”. A revolta dos robôs que tanto assombra os humanos é um mito. Esta afirmação é uma provocação ou um exagero? Não sabemos. A pergunta deve ser outra, porque a evolução tecnológica acabará por acontecer e nós não estaremos preparados se não debatermos já como queremos lidar com este “ambiente” – no sentido de ecossistema, e não com máquinas individualmente falando – que se vai tornando cada vez mais inteligente.

A pergunta decompõe-se em várias perguntas: como queremos lidar com a cidade onde vivemos? Uma cidade inteligente que monitoriza tudo o que fazemos, que sabe o que compramos, o que consumimos e o que não consumimos? Fisicamente, o local onde vivemos não vai mudar muito, mas a forma como interagimos com a cidade vai mudar. Temos de estar conscientes disso e temos de nos preparar para podermos criar ambientes inclusivos e não exclusivos, ambientes capazes de gerar equilíbrios.

André Barata, filósofo e cronista neste jornal, partilhou este pensamento em “As máquinas e o seu futuro connosco”: “Temos de compreender que uma Web global com personalidade e arrufos não é um dado que nos transcende, mas que precisa do nosso cuidado colectivo, ético e político. O melhor é ir entrando devagarinho neste novo mundo em vez de lhe virar as costas com anátemas”.

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