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Eleições na Turquia: Poder e oposição usam refugiados sírios como argumento político

Na campanha eleitoral para a segunda volta das eleições presidenciais, marcadas para domingo, Kiliçdaroglu, líder do laico Partido Republicano do Povo (CHP) centrou a campanha no repatriamento dos refugiados sírios, uma tentativa de atrair o voto nacionalista, enquanto o Governo também respondia com novos anúncios.
  • Turquia
27 Maio 2023, 08h34

Os milhões de refugiados sírios que se refugiram na vizinha Turquia desde 2011 estão hoje confrontados com crescente animosidade, de Governo e oposição, que os utilizam como argumento eleitoral num contexto de grave crise económica.

Em Istambul, o​​​​ bairro Fathi, onde está a sede da Mazlumder, associação para os direitos humanos e solidariedade com os oprimidos, alberga uma importante comunidade de refugiados sírios, que ali montaram as suas lojas artesanais, os seus restaurantes, os seus pequenos negócios, ao lado de nacionais iemenitas ou palestinianos, também fixados neste microcosmos multiétnico da metrópole turca.

O local é frequentemente visitado por Taha El-Gazi, 39 anos, natural da cidade de Deyrizor – nordeste da Síria, não longe do Curdistão iraquiano – e ativista de direitos humanos na Plataforma dos Direitos dos Refugiados. Fixou-se em definitivo na Turquia em 2013, e domina a língua do país de acolhimento, que antes do início da guerra civil síria, em 2011, já visitava com frequência.

“Neste período eleitoral, em particular, os refugiados sírios estão a ser utilizados como um argumento na arena política. Pela oposição contra o Governo e, em simultâneo, o Governo também usa este argumento contra a União Europeia”, começa por assinalar este professor de física, doutorado na área da cosmologia na Turquia antes do início da guerra.

“Tendem a relacionar a inflação e a crise económica com a questão dos refugiados [que] são o elo mais fraco da cadeia. E usam esse argumento com objetivos eleitorais”, denuncia o ativista, que tem acompanhado a situação em torno dos refugiados sírios desde 2018 até à atualidade.

A plataforma de que El-Gazi faz parte ​​​​​​trabalha com voluntários, com institutos estatais, além de diversas organizações não-governamentais e, a nível internacional, com as Nações Unidas. Também participa no projeto PIKTES, apoiado pela União Europeia e vocacionado para a integração das crianças sírias no sistema educativo.

El-Gazi recorda a retórica anti-imigração utilizada por diversos partidos na segunda volta das eleições presidenciais de domingo, incluindo forças ultranacionalistas que deram o apoio a Kemal Kiliçdaroglu, candidato da oposição e rival do Presidente Recep Tayyip Erdogan.

“O partido no poder e a oposição tentam enviar-nos de novo para a Síria. Se compararmos os partidos da oposição e o poder, a linguagem dos primeiros tem contornos racistas, diversos líderes políticos usam um discurso do ódio”, denuncia, após ser recebido por Kaya Kartal, advogado e presidente da Mazlumder.

Na campanha eleitoral para a segunda volta das eleições presidenciais, marcadas para domingo, Kiliçdaroglu, líder do laico Partido Republicano do Povo (CHP) centrou a campanha no repatriamento dos refugiados sírios, uma tentativa de atrair o voto nacionalista, enquanto o Governo também respondia com novos anúncios.

Na quinta-feira os ‘media’ turcos anunciaram a construção de um novo complexo residencial no norte da Síria, perto da fronteira comum, com o objetivo de reinstalar refugiados sírios.

O ministro do Interior turco, Suleyman Soylu, colocou na quarta-feira a primeira pedra em Al-Ghandurah, numa faixa fronteiriça controlada por Ancara, que desde 2016 intervém no norte do país vizinho sob o pretexto de combater as milícias curdas locais.

Soylu referiu-se ainda a um “regresso digno, voluntário e seguro”, e indicou a construção de “240.000 alojamentos” nessa região, que escapa ao controlo do regime de Damasco do Presidente Bashar al-Assad.

“Nos últimos quatro anos, regressaram à Síria 400.000 refugiados. E 95% ficam na parte norte da Síria, no território sírio curdo do YPG – a milícia curda síria que Ancara considera uma extensão da guerrilha curda implantada no sudeste da Turquia – ou nas zonas ocupadas pelo Exército turco e apoiantes locais. A maioria recusa instalar-se nas regiões controladas pelo regime de Assad”, indica El-Gazi​​​​​​.

“Apenas 5% dos que regressaram foram para as regiões que o regime controla. São detidos e vão para a prisão. Diversas organizações de direitos humanos já denunciaram esta situação”, adianta.

O ativista sírio não duvida que a estratégia dos dois campos políticos que se digladiam nas presidenciais turcas coincide no objetivo de enviar todos os refugiados para a Síria. Denuncia a retórica anti-imigrantes dos partidos que se opõem ao Governo de Erdogan e ao Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, no poder desde 2003), com o Presidente turco a responder nos seus discursos que pretende “repatriar um milhão de sírios”.

Face à degradação da situação, recorda a sugestão de um pacto entre os principais partidos para que a questão dos refugiados sírios não fosse utilizada como um instrumento na arena política.

“Mas após admitirem que iriam analisar a proposta, recuaram. E a maioria dos partidos da oposição começou a sugerir a existência de uma ligação entre os refugiados sírios e o AKP”, disse, para ressalvar que a larga maioria dos refugiados do seu país não mantém qualquer relação com os partidos políticos turcos.

“Diversos sírios já foram mortos na Turquia devido ao uso público desta linguagem de ódio. Há vários casos, em Izmir, em Bursa, Istambul, em outras regiões… Por vezes apenas por estarem a falar em língua árabe. Um discurso do ódio que já começou a ser fomentado nas escolas primárias, onde os alunos sírios também são alvo de ataques”, afirma.

O bairro Fathi regista a maior concentração de refugiados sírios em Istambul. As escolas são em língua turca e as crianças sírias têm de aprender turco para as frequentar.

“Faz parte do processo de assimilação. Chamam-lhe integração, mas é assimilação. E muitas crianças já se recusam a falar em árabe, com receio de serem molestadas”.

Atualmente, estão registados na Turquia 3,7 milhões de refugiados sírios (numa população de 85 milhões) mas na prática podem ultrapassar os quatro milhões. Cerca de 230.000 garantiram a nacionalidade turca.

Taha El-Gazi, muito popular nesta zona de Istambul, assegura que a maioria da comunidade síria está integrada, tem trabalho, mas continua a sentir uma “barreira” que a afasta ostensivamente da população. Trabalham em fábricas de calçado, têxteis, construção civil, na agricultura ou no pequeno comércio.

“Se a sociedade não aceita a integração, todos os esforços dos últimos dez anos foram em vão. Ainda não existe um estatuto para os refugiados, apenas a proteção temporária, o que significa que não foram considerados refugiados, mantêm-se num estatuto indefinido”. E em tempos de grande instabilidade.

A recente e ainda ténue reaproximação entre Ancara e Damasco no sentido da normalização das relações também suscita muitas apreensões entre os sírios acolhidos na Turquia.

“No caso de um acordo, será muito perigoso para os refugiados, receiam que sejam entregues a Assad. Face aos contactos entre Ancara e Damasco, e ao discurso de ódio da oposição, a maioria dos refugiados anseia partir para a Europa”, revela.

Uma opção que também suscita dúvidas, com Taha El-Gazi a recordar o acordo assinado em 2016 entre a União Europeia e a Turquia “e pelo qual, a troco de seis mil milhões de euros, os países europeus se comprometiam a receber um máximo um milhão de refugiados sírios, com os restantes quase três milhões a permanecem em território turco”.

No final, censura a UE por não ter cumprido este acordo. “Mas após a guerra na Ucrânia, foram aceites milhões de refugiados ucranianos sem qualquer restrição, um dos casos negros da União Europeia”, concluiu.

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