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“Estuário” – O derradeiro porto de abrigo

Neste livro a geografia insinua-se e sussurra-nos ‘Lisboa’ sem o dizer verdadeiramente. Lídia Jorge desnuda as agruras de uma família que regressa à casa paterna em busca de um porto de abrigo.
24 Maio 2020, 11h32

 

Recordo uma frase proferida por Lídia Jorge numa entrevista: “Onde não há esperança não há medo”. Recordo que medo é uma palavra recorrente nos tempos que correm, mas não vou desviar-me. A autora referia-se ao impacto que os livros podem ou não provocar nos leitores. E acrescentou que escreveu “Estuário” sem rede. Recordei tudo isto quando entrei no livro, nesse golfo metafórico onde se misturam águas doces e salgadas.

A geografia é incerta, mas Lisboa ganha forma a todo o momento. O tempo é impreciso, mas também é o nosso. A história é a de uma família que se perde e empobrece. E uma vez na pobreza, todos confluem para o mesmo local – a casa do pai Galeano, ela própria um “estuário”.

O filho mais novo, Edmundo é o primeiro a desaguar no lar paterno. Sobreviveu a Dadaab, um dos campos de refugiados que o ACNUR mantém no Quénia, onde “o passado estava a extinguir-se e o futuro surgia com a configuração deprimente de uma civilização alimentada de pó”. Edmundo regressa com uma missão em mente: escrever um livro sobre o quotidiano atroz desses povos, deixar um alerta à humanidade. E traz consigo um membro decepado – perdeu três dedos da mão direita.

Edmundo Galeano vai dividindo os factos do mundo em duas categorias, os que merecem figurar no seu livro e os que não merecem. As tragédias pessoais dos irmãos abatem-se sobre o seu ímpeto de escrita. Alexandre, o engenheiro. Sílvio, o bon vivant. João Vasco, que-nada-quer-saber-dos negócios-da-família. Charlote, por todos criticada, e o filho, David, que não prescinde da baleia cantora. A casa do Largo do Corpo Santo e a biblioteca, personagens por direito próprio. A cidade e o seu estuário.

Edmundo obcecado pelo bem e pelo mal, ao ponto de propor-se “conquistar a beleza para que o seu livro resulte enquanto lição”. Ao ponto de pedir ajuda e de copiar vezes sem conta o fim da Ilíada, “o livro dos livros”, lê-se no posfácio, “aquele a que todos procuramos acrescentar uma linha, sem nunca conseguirmos”; “o livro que inspira todas as ousadias”. Não acrescentou, mas aprendeu a ver pelos olhos dos outros. A questionar pela retina alheia. “Mãe, uma pessoa que se pendura de uma trave para morrer é muito fraca ou muito forte?”, pergunta David. A resposta não chega. Mas Edmundo irá escrever o tão ansiado livro, porque, afinal, não foi o fim da história. A redenção ainda está por fazer.

“Estuário” faz-se de retornos ao passado mas sempre com o olhar no futuro. O olhar crítico e desassombrado de Lídia Jorge, ela que é uma das escritoras mais premiadas e consagradas internacionalmente como uma grande Romancista, com maiúscula.

A sugestão de leitura desta semana é uma edição D. Quixote e um pretexto para animar este início de desconfinamento.

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