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“Amálgama”: escrita selvagem e sem freio

Rubem Fonseca, retratista e intérprete de desajustes ao longo de décadas, disseca as fissuras humanas neste livro de contos para beber de um trago só.
17 Maio 2020, 11h08

 

Dizer que o ‘Brasiú’ tem muitos ‘Brasis’ é não dizer nada. Dizer que tem ordem e progresso, caos e retrocesso, idem. Que busca a paz e combate a corrosão, também. A violência como ato de vingança social. As entranhas do corpo que insistem em interferir nas nossas vidas. O ser humano e as suas mazelas enquanto fonte inesgotável da escrita. Ou da pintura, pois há escritores que pintam retratos. Rubem Fonseca, o retratista.

Do sórdido, violento, perturbador tecido urbano. De personagens quase sempre desamparadas: polícias e marginais, escritores fracassados, novos-ricos frustrados, mulheres e homens desesperadamente sós. Rubem Fonseca, retratista e intérprete de desajustes ao longo de décadas. Radiologista das fissuras humanas, feitas contos que nos contam, entre outras histórias, a história de um pai que planeia matar o próprio filho por amor; de uma mãe que quer vender o neto que está para nascer, mas que acaba por ter de desistir da ‘ideia’; de um tipo que faz entregas de bicicleta e a utiliza como instrumento para punir as pessoas que ele considera más; de um assassino a soldo com escrúpulos; dos desavindos com a vida…

“Neste momento estou no meu apartamento de quarto e sala, em Copacabana. Pode haver coisa pior do que morar em um apartamento de quarto e sala na avenida Nossa Senhora de Copacabana? Quando chego do trabalho, gosto de caminhar na rua, mas em Copacabana isso é impossível. As ruas vivem cheias o dia inteiro, gente fazendo compras, sujeitos vendendo bugigangas, mendigos pedindo esmolas, velhos e velhas, gente de todas as idades olhando vitrines cheias de porcarias, enquanto os carros e ônibus e caminhões que trafegam pela avenida fazem um barulho infernal e enchem os nossos pulmões de gazes cancerígenos.”

O tecido urbano é o pulmão da obra de Rubem Fonseca – filho de portugueses transmontanos emigrados para o Brasil e carioca desde os oito anos –, a montra do seu olhar impiedoso, umas vezes lírico, a maior parte delas corrosivo. Por pouco não fez de tudo na vida. Foi paquete, escriturário, nadador, revisor de jornal, comissário de polícia… Licenciado em Direito e Mestre em Administração com formação nos Estados Unidos, foi professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas, mas o tempo que passou nos quadros da polícia revelou-se providencial para recolher a principal matéria da sua ficção: os podres humanos. E a eterna questão. Alguma vez conseguiremos ser melhores?

Rubem Fonseca morreu em abril, mas a sua pintura continua por cá nos muitos quadros que escreveu ao longo da vida. “Amálgama”, editado pela Sextante, é apenas uma das telas deste contista, romancista, ensaísta, argumentista e “cineasta frustrado”, para quem era impensável não escrever sobre “pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado”.

Uma edição da Sextante na “Estante JE” para saborear neste início do desconfinamento.

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