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António-Pedro Vasconcelos: “Se fechassem o mercado europeu, Hollywood fechava”

Nesta conversa amena e descontraída, o cineasta António-Pedro Vasconcelos fala sobre a sua paixão pelos livros e pela pintura, a liberdade que viveu em Paris e a enorme dispersão de produção audiovisual, concluindo que “as séries são o futuro do audiovisual”. Pretexto para conhecer melhor um contador de histórias que não prescinde de ler a realidade e devorar a ficção. Releia a entrevista ao realizador publicada originalmente em novembro de 2021.
6 Março 2024, 11h52

Texto publicado originalmente na edição 247 de 5 de novembro de 2021. O Jornal Económico volta a publicar a última entrevista do cineasta António-Pedro Vasconcelos no dia da sua morte

“A raça humana não pode suportar muita realidade”. Quem o escreveu foi T.S. Eliot. Quem o subscreve, agora e sempre, é António-Pedro Vasconcelos. Fala o amante de ficção, o devorador de livros. Ou melhor, e citando o próprio, o devorador de “romances. Depois vem o resto”.

Furtando uma conhecida frase, dir-se-ia que primeiro era o Verbo. Nada disso. Primeiro era a luz, pois quando queríamos passar a palavra ao autor de ensaios, essa faceta menos conhecida de António-Pedro Vasconcelos, que também responde pelas suas iniciais, APV, a luz intrometeu-se.

O Tejo, ao fundo, contemplou-nos e não tomou partido. Mas a luz, essa, não perdoou e impeliu-nos da varanda para o interior, em busca de sombra e recato. Sem nos apercebermos, a ação já se desenrolava na biblioteca da casa de APV, onde a penumbra levava a melhor sobre o sol de outono.

Somos recebidos por Mário Soares, em estado hilariante, e Júlio Pomar, sereno e de sorriso nos olhos. Noutra parede, um recorte chama também a atenção. Desta feita pelo pesar, pela angústia, pelo medo que nela paira. Homens, mulheres e crianças no mar, numa miserável balsa que ameaça afundar-se a qualquer instante.

“Guardei este recorte a propósito da história de um capitão que abandonou os passageiros e de eles sobreviverem no mar, porque me lembra um quadro famoso de Géricault, «Le radeau de la Méduse». Está a ver qual é? É igual!”

E retirou um livro, dentre os muitos que formam torreões, quais ameias de castelo sobre uma imensa mesa, e abriu, num movimento lento e certeiro, na página onde está uma reprodução desse quadro. “A qualidade da imagem é péssima”. Mais uma vez a luz. A impressão não respeitou a luz. As nuances da luz. E assim regressamos ao ensaio que escreveu para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, “O Futuro da Ficção”, sobre o papel da ficção na cultura ocidental desde Homero até John Ford. Tão-só um dos seus realizadores preferidos.
Mas ainda não chegou o momento de falar de cinema com António-Pedro, que já disserta com enorme prazer sobre outro pintor e a sua capacidade de subversão: Velázquez. “O primeiro dinheiro que ganhei na minha vida foi a fazer banda desenhada, com 18 anos. E o primeiro dinheiro que ganhei foi para ir ao Prado ver este quadro, porque percebi que este quadro – e aponta para o “Cristo Crucificado” –, como todo o Velásquez, é completamente subversivo. Só que a subversão no Velásquez é uma coisa de que ninguém se apercebeu”.

Por que razão é que este quadro é subversivo? “Porque é o único quadro em que o Cristo está apoiado nos pés. Em todos os outros está pendurado na cruz, só que Velázquez não está a pintar Cristo, está a pintar o modelo. Para isso não o podia pendurar numa cruz. E depois pôs aqui uma coisa [e aponta para a aura na cabeça da figura retratada] para não dizerem que não era católico! E este aqui – “As Meninas” – é uma das maiores subversões que Velázquez alguma vez fez. Está a pintar as filhas do Rei, mas qual é o personagem principal? É ele próprio! E sabia muito bem o que estava a fazer.” [sorriso]

De Géricault e Velázquez ao Louvre foram breves instantes. Tempo ainda para cumprimentar a “Vitória de Samotrácia” e tecer loas a esta mulher alada enigmática, obra-prima da época helenística. Outro vício, paixão de APV: visitar museus. Não prescinde de tal “nicotina”. Mas já que nos encontrávamos na capital francesa, a pergunta impunha-se: se vivesse outra vez os anos 60 em Paris, voltaria a fazer tudo o que fez outra vez?

“A arte é tentada a despertar os homens para a grandeza que estes ignoram em si” André Malraux

Nasce em Leiria a 10 de março de 1939. O liceu é feito em Coimbra, Lisboa e no Colégio dos Jesuítas de Santo Tirso, onde põe a fé à prova. Em 1957 ingressa na Faculdade de Direito de Lisboa, que frequenta durante três anos, mas nunca virá a concluir. “Foi coisa que nunca liguei nenhuma, o Direito. Em três anos fiz uma cadeira… Ia para as aulas com livros de poesia e romances de Stendhal”.
Nos anos da faculdade, o Cine-Clube Universitário de Lisboa (CCUL) abre um concurso de críticas e APV começa a escrever nos seus boletins. De 1958 a 1960 faz parte da direcção do CCUL.

Escreve na revista “Imagem” a convite de José Ernesto de Sousa – de quem foi assistente em filmes de publicidade –, assim como no “Jornal de Letras e Artes”, e assina a coluna «Campo/Contracampo», em conjunto com Alberto Seixas Santos, no “Diário de Lisboa”. Em outubro de 1961 parte para Paris como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, para estudar Filmologia na Sorbonne. Será mesmo assim?
“Se eu vivesse outra vez os anos 60, acho que foi a melhor coisa que eu fiz e voltaria a fazer. Não me lembro dos detalhes no dia a dia, mas voltaria a fazer praticamente tudo igual”, garante APV com um sorriso discreto.

“Levei a minha mulher e o meu filho mais novo, que tinha mês e meio na altura. Claro que ela acabou por se ocupar mais dele do que eu. Era um bebé e eu tinha de justificar a minha bolsa e a minha curiosidade, e portanto o que era essencial para mim era ver filmes. Por um lado, ver na cinemateca toda a história do cinema – a Cinemateca abria às seis e meia, e tinha três sessões até à meia noite e tal. Vi uma média de mil filmes por ano. E, por outro lado, durante o dia, as sessões começavam ao meio-dia, ia ver os filmes que tinham estreado às salas de cinema. Tive sorte, pois apanhei a altura em que se estavam a estrear os filmes da Nouvelle Vague, Godard, Truffaut e por aí fora, e também os filmes dos últimos grandes mestres americanos e italianos”.

Para quem ama a ficção e a história do cinema, não seriam as aulas na Sorbonne a levar a melhor sobre os mestres… “Na Sorbonne não, no IDHEC [Institut des Hautes Etudes Cinématographiques]. É verdade que fui para a Sorbonne porque havia um curso de filmologia, pois não queria perder três anos em Paris numa escola, a aprender os princípios do cinema e como é que se mexe numa câmara… não me interessava nada disso. Para mim, o mais importante era ver os mestres. A técnica era uma coisa que depois aprenderia com facilidade. Não me arrependo. Só que, para efeitos da Gulbenkian, era difícil se eu dissesse: «olhe, quero uma bolsa para ir ver filmes».

E como se consegue uma bolsa para ‘ver filmes’? “Havia o tal curso de filmologia, que era uma disciplina que tinha sido inventada por um tipo chamado [Gilbert] Cohen-Séat, que não tinha a ver com o cinema mas sim com imagens em movimento. Ou seja, com a capacidade hipnótica que as imagens têm. E, portanto, o governo francês acabou por lhe dar uma escola, porque aquilo podia servir em caso de guerra e de conflitos, etc., para manipular imagens. No fundo, não tinha muito a ver com o que eu queria fazer, mas como era a Sorbonne e o professor principal era o Georges Sadoul – uma proeminência da história do cinema que aceitou ser meu tutor – consegui que me dessem a bolsa”.

“Mas depois o Instituto fechou e eu pedi à Gulbenkian para terminar os meus estudos em Paris, e o Georges Sadoul escreveu uma carta muito elogiosa a dizer que era um crime interromper os meus estudos e a Gulbenkian concedeu-me mais um ano… Aí, sim, já só para ver filmes, com a tutela do Georges Sadoul, que eu vi para aí uma vez na vida! [sorriso]

Paris deu-lhe mais do que cinema e Nouvelle Vague? “Para além do cinema, que é fascinante, ninguém pode imaginar hoje o que é um jovem que viveu em Portugal até aos 21 anos, a idade que eu tinha quando fui para Paris, primeiro em Leiria, depois em Coimbra, depois em Lisboa… Fui subindo em ‘escala’, digamos assim, porque o meu pai era juiz e ia sendo nomeado e colocado em diferentes cidades…”

“E depois havia a ditadura, a censura, a PIDE. As mulheres não podiam ir ao café, não podiam sair sozinhas do país… Os livros eram proibidos, os filmes eram proibidos ou cortados… Aconteceu uma vez, estar a beijar uma senhora, num bar, e ser posto na rua… E depois chegar a Paris! Ir às bibliotecas, poder comprar qualquer livro e ver os filmes que bem quisesse. Havia mulheres nos restaurantes, nos cafés, pessoas a beijarem-se nas ruas… Liberdade! Isso para mim foi tão importante como o cinema”.

Terminada a bolsa, a vontade de não regressar a Portugal é imensa. Tenta ficar em França como assistente ou estagiário de Jean-Luc Godard. Não resultou. Itália e um realizador que muito aprecia, Rossellini, são a sua próxima aposta.

“Tinha um amigo em Roma que tinha outro amigo com bons contactos no meio intelectual e podia abrir-me portas para um encontro com o Rossellini. Meti-me no comboio e fui para Roma, mas parei em Florença porque queria ver a cidade e, claro, as Uffizi. E quando lá chego, era o dia em que estavam fechadas! E nunca mais me vou esquecer disso porque estava um outro fulano, também ele muito dececionado, que resmungava umas coisas em português. E então meti conversa. Sabe quem era? O Eduardo Lourenço! Foi assim que conheci o Eduardo Lourenço. E ali estávamos os dois, sozinhos, em Florença, lixados pelas Uffizi estarem fechadas. Uma coisa incrível!” [sorriso]

As histórias intrometem-se e fluem, quais curtas-metragens. O combóio já segue viagem para Roma. “Tinha comprado o «Corriere della Sera» e, quando abro o jornal, leio uma carta do Rossellini a explicar que ia abandonar o cinema e porquê. Ia dedicar-se à televisão… Decidi ir à mesma. Quando lá cheguei, ainda liguei para casa do Rossellini. Atendeu uma pessoa – não sei se foi o próprio ou não – a dizer que ele não estava. Expliquei o que pretendia e disseram que era a pior altura, porque ele abandonou o cinema e tal… Ainda escrevi ao Antonioni – até tenho uma carta dele. O ‘meu’ realizador era o Rossellini, mas se conseguisse um estágio com o Antonioni talvez me abrisse portas e pudesse ficar em França ou Itália… Mas o Antonioni, de uma maneira muito simpática, disse-me: «Não tenho lugar para si. Além disso, desaconselho. Se você quer ser realizador e tem a sua própria visão do mundo, vai ficar condicionado pela minha». Uma desculpa inteligente e diplomática, digamos. Depois acabei por voltar a Portugal, não tinha alternativa…”.

“A fotografia é verdade. E o cinema é a verdade vinte e quatro vezes por segundo. O cinema é a fraude mais bela do mundo” Jean-Luc Godard

A vontade de fazer filmes era imensa. Descobriu que, apesar da ditadura, da censura e da PIDE, havia outros como ele que queriam fazer cinema. Das tertúlias no Vá-Vá ao Cinema Novo, de Paulo Rocha e Seixas Santos, a João César Monteiro, Fernando Lopes e Cunha Telles, a 7ª arte trilhava novos caminhos. APV funda o Centro Português de Cinema em 1969, que virá a dirigir em 1974/75, para aí rodar a sua primeira longa-metragem, “Perdido por Cem” (1972). Vivia para o cinema.

“Nunca fui aliciado para o PC. Muitas pessoas da minha geração foram aliciadas, mas eu, sendo de esquerda, era e sou social-democrata, não sou revolucionário. Independentemente de ser um leitor assíduo do Marx e Lenine, e de ter um fascínio sobretudo pelo Marx escritor e historiador, as profecias de que, um dia, passando pela ditadura do proletariado, poderia haver uma espécie de paraíso na Terra, nunca me seduziram. O que me interessa é o cinema”.

E o cinema é a confluência de uma boa história com uma boa direção de atores, a que não será alheia a ‘mão’ do produtor. Essa figura que tudo pode ou tudo perde, e a quem “o sistema não favorece”, sublinha APV, porque em Portugal “não há indústria cinematográfica”.
Ainda assim, o JE quis saber se o cineasta – que realizou mais de dezena e meia de filmes, o mais recente dos quais com estreia marcada para o início de 2022, um vasto conjunto de documentários e séries para televisão – destacaria algum produtor nacional.

“Há dois. O [António] Cunha Telles. Trabalhei com ele esporadicamente, nunca continuadamente, mas era um produtor extraordinário. No meu caso, ajudou-me imenso – apesar de termos tido alguns conflitos –, mas é a pessoa que eu mais respeito. E o Paulo Branco. O primeiro filme que ele produziu foi o meu, o “Oxalá”, porque éramos muito amigos. Mas depois desentendemo-nos…. “

“E porque é que são dois grandes produtores? Porque quer um quer outro passaram as fronteiras e não se contentaram em fazer uns filmezinhos aqui. Foram buscar dinheiro lá fora, foram produzir filmes lá fora, franceses nomeadamente, e projetaram também filmes portugueses no estrangeiro. Obviamente, são produtores que dependem de financiamentos públicos, porque não há nenhum país na Europa, nem no mundo, em que os filmes sejam pagos pelo seu próprio mercado. Se fechassem o mercado europeu, por exemplo, Hollywood fechava, tinha que se reconverter”.

Aqui chegados, é preciso alargar a conversa a outras duas áreas, exibição e distribuição. Por uma razão muito simples. Os EUA “não se comparam connosco [Europa] porque têm uma distribuição planetária, e eles perceberam que o segredo da indústria é a distribuição. Não é nem a produção nem a exibição, porque dantes tinham uma estrutura integrada: eram produtores, distribuidores e exibidores. O Roosevelt acabou com isso, proibiu-os de ter salas. E depois deixaram de ser produtores. Hoje em dia, são produtores independentes que propõem filmes aos estúdios, que são fundamentalmente distribuidores. Se o filme interessa, dão garantias de distribuição à escala ‘x’ e você vai ao banco e arranja o dinheiro.

“É óbvio que não nos podemos comparar com Hollywood, mas isto é para dizer que não há nenhum país – nem a França, que é de todos os países europeus o que tem maior sucesso, uma indústria audiovisual, políticas inteligentes e continuadas, se paga a si própria. Tem de haver dinheiro público. E tem que haver regulação do mercado e imposições a toda a cadeia de valor para que uma parte do dinheiro que ganham seja reciclável e reinvestido no cinema”.

“A minha única nostalgia é para com o futuro”

Roberto Rossellini
E o que pensa APV sobre o facto de as salas de cinema terem perdido importância para outros ecrãs e as plataformas de streaming se terem imposto. Ou seja, de os filmes terem cedido lugar às séries. “O importante no Ocidente é a ficção, mas a ficção tomou várias formas. Passou pela pintura do Renascimento, pela escultura, pelo teatro do Shakespeare no tempo da Isabel I, passou pela ópera, pelo romance, pelo cinema… E o próprio cinema, ou melhor, o cinema nas salas, a certa altura, deixou de ser, entre as artes audiovisuais, hegemónico.

“Não é tragédia nenhuma, isto aconteceu ao longo dos séculos. O problema é o que vem a seguir, para onde é que isto se desloca. Neste momento não é claro. Há uma enorme dispersão, quer em termos de produção, quer em termos de visionamento: telemóveis, tablets, Google, YouTube… Há uma crise das salas e, falando nos jovens, aqueles que vão ver cinema às salas, vão ver filmes muito infantilizados e com super-heróis.

“Porque é que as séries têm mais maturidade e tratam de outros assuntos? Porque são para um público já mais adulto e mais maduro, que fica em casa porque tem filhos e já vai menos ao cinema. Ou seja, é possível fazer filmes para essas pessoas. Hoje em dia, a maioria das séries são mais interessantes que os filmes.

Estará APV rendido às séries? Quem sabe é esse o próximo desafio. “Creio que as séries são o futuro do audiovisual. Se fosse mais novo, talvez me interessasse, mas teria de poder escrever e realizar. O que eles [as plataformas] às vezes fazem é pegar num realizador consagrado e ele faz o primeiro e o segundo episódios, e depois os outros vêm mimetizar o estilo. Não digo isto com nostalgia, estou é expectante para ver o que pode surgir na sociedade que tenha o mesmo impacto que teve o cinema e outras expressões artísticas.

“Ora, neste momento há uma dispersão enorme de produção audiovisual. Enorme! Mas não há aquilo a que podemos chamar os autores que eram federadores. Por exemplo, a Inglaterra vitoriana revia-se no Dickens. Não havia ninguém que não conhecesse o Dickens, que ganhava fortunas a alugar salas de teatro para ler um capítulo do seu próximo romance. Tal como não havia ninguém que não conhecesse as óperas de Verdi. Os filmes do John Ford. Nos últimos anos da vida do Tolstoi, havia verdadeiras peregrinações a casa dele… Isto para não falar do Victor Hugo.

“É nesse sentido que a grande ficção foi sempre uma forma de ajudar as pessoas a reverem-se por interpostas personagens e interpostas intrigas, de ajudá-las a perceberem-se a si mesmas, as suas ansiedades, os seus sonhos, os seus receios. E eram coisas que eram discutidas por toda a gente.

Atualmente, há milhares de coisas – e não estou a contestar isso e a qualidade de muitas obras –, mas não há aquilo a que chamavam os grandes autores. Tinham interpretado a sociedade de tal maneira que tinham esse papel, ou seja, eram autores de culto.
“A ficção tinha esse papel, hoje não tem. Digamos que há uma grande dispersão e que ainda não se conseguiu encontrar uma forma de expressão adequada ao século XXI que consiga ser federadora. Veremos se o cinema vai continuar…”.

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