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Livro: “O Olhar do Outro”

Maria Filomena Mónica reúne textos de quem nos visitou e deixou um “olhar” sobre nós. E se houve quem considerasse os portugueses “intrépidos na condução”, também houve quem nos qualificasse de “patologicamente tolerantes”. Eis a sugestão de leitura desta semana da Palavra de Viajante.
22 Junho 2020, 11h10

 

Muito antes do recente crescimento do turismo em Portugal, estrangeiros de diversas proveniências vieram de viagem ao nosso país e escreveram as suas impressões. “O Olhar do Outro – Estrangeiros em Portugal do Século XVIII ao Século XX”, de Maria Filomena Mónica e recentemente publicado pela Relógio d’Água, tendo merecido já uma primeira reimpressão, junta diversos desses relatos.

Divididos em quatro capítulos – O Terramoto e o Antigo Regime (1755-1820), Tempos Agitados (1820-1851), A Regeneração (1851-1910) e O Século XX –, neles encontramos nomes mais ou menos (re)conhecidos por cá. Dos iniciais, o mais sonante será o de William Beckford, nascido numa das mais ricas famílias inglesas da época. Quando se dirigia à Jamaica, sofrendo de tal enjoo no barco, pede ao comandante que encurte a viagem e fica por Lisboa, com os seus 30 criados, um médico e um piano. Voltaria mais umas três vezes, tendo comprado a Quinta de Monserrate.

E, claro, Lord Byron, que não terá gostado particularmente do que viu – em particular os habitantes –, com exceção de Sintra, sobre a qual escreveria ser “talvez a mais bela do mundo”, Hans Christian Andersen ou Mark Twain, cujo retrato dos Açores, onde pararia a caminho da Terra Santa, é de tal forma pouco elogioso que quase impedia a publicação de “A Viagem dos Inocentes” em português. Mas a verdade é que Twain troçava de tudo e de todos, pelo que os habitantes do Faial, onde o barco atracou, não foram exceção.

Igualmente implacável foi Simone de Beauvoir, ao contrário de Sybille Bedford (lamentavelmente nunca traduzida para português), que achava que os portugueses trabalhavam muito e por muitas horas, a troco de salários miseráveis. O autor de “O Principezinho”, Antoine de Saint-Exupéry, também por cá esteve, em 1940, a caminho dos Estados Unidos, no mesmo ano que o húngaro Arthur Koestler, como tantos outros refugiados judeus. O antissemita romeno Mircea Eliade deixou um diário da sua estadia de 1941 a 1945, quando aqui ocupou o cargo de adido cultural do seu país.

Logo em 1974, destaque para o poeta alemão Hans Magnus Enzensberger, hoje com 90 anos, que, na sua segunda vinda a Portugal, em 1986, considerava que o sonho de 1974 morrera, mas que não perdêramos todas as nossas qualidades: continuávamos patologicamente tolerantes, céticos e espontaneamente generosos.

Já Gabriel Garcia Márquez, em Lisboa para escrever uma reportagem sobre o Portugal pós-Revolução (esteve duas semanas em junho de 1975), encantou-se com o arroz de cabidela, assistiu à tomada de posse dos primeiros deputados democraticamente eleitos e considerou que os portugueses eram intrépidos na condução, não respeitando os semáforos, tendo atribuído esta característica ao facto de, na altura, nos sentirmos felizes e livres.

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